Meu corpo, minha oferta (Meu relato de parto)

**TRIGGER WARNING: Esse texto contém um relato difícil de parto. Se você teve uma experiência traumática com seu próprio parto ou qualquer trauma com relação a procedimentos médicos, esse relato pode ser difícil de ler para você. Por favor seja prudente em seguir com a leitura.**

Eu nem sei bem por onde começar esse texto. Parte de mim pensa que ainda não é a hora, mas quando será? “Quando eu estiver completamente bem”, eu digo a mim mesma. “Quando tiver aprendido todas as lições que preciso aprender”. Mas e quando será isso? Sei que na realidade esse dia provavelmente nem chegará. Maternidade é padecer no paraíso, eles dizem, e me parece verdade. A alegria intensa e a dor intensa, tudo embrulhado junto na mesma embalagem de presente. Então se o “dia perfeito” de contar minha história nunca vai chegar, contarei-a já, enquanto ainda a vivo tão intensamente, de forma ainda tão crua, com feridas ainda abertas, na esperança de encorajar e abençoar.

Antes de começar quero já esclarecer algumas coisas. Em primeiro lugar, a frase título desse texto eu encontrei enquanto “passeava” pelo Instagram e infelizmente nunca consegui achar de novo a autora (se for você, me avise e te darei os créditos!). A ideia é trazer um contraponto ao lema “Meu corpo, minhas regras”. Em Cristo nós declaramos “Meu corpo, minha oferta”, colocando nossos corpos no altar e deixando que Ele escolha o que fazer, e eu aprendi isso de forma tão profunda durante meu parto. Em segundo lugar, não estou escrevendo meu relato de parto para que pessoas possam sentir dó de mim. Eu passei o que tinha que passar, a porção que o Senhor separou para mim, e sou grata. O Senhor deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor. Tampouco estou compartilhando para assustar grávidas (mesmo porque minha experiência foi incrivelmente rara) ou deixar pessoas com boas experiências de parto se sentindo culpadas. Meu único objetivo é possivelmente ajudar outras mulheres que tiveram partos traumáticos a verem que não estão sozinhas em suas dores (eu sei que por vezes me sinto assim). 

Então, eis minha história.

 Eu engravidei no primeiro mês de tentativa. Um dia antes de descobrir que estava grávida tive dores agudas na região do ovário e suspeitei de gravidez etópica. Na época eu chorei a Deus e clamei a Ele que não tirasse essa vida de nós. Mas descansei e, depois de muita oração, finalmente consegui declarar que quer esse bebê viesse para nossos braços ou para os braços do Pai, eu estaria em paz. O Senhor foi misericordioso e em um ultrassom, às 7 semanas, vimos nossa filha alojada no lugar certo, dentro do meu útero. O primeiro de muitos milagres tinha acontecido. Depois disso, fora os enjoos dos primeiros dois meses, tive uma gravidez incrivelmente tranquila. Lembro até mesmo de brincar com meu marido dizendo, “Minha gravidez tem sido tão maravilhosa que eu suspeito que o parto será terrível”. Infelizmente eu estava certa.

No dia 5 de Janeiro de 2020, dois dias antes da data prevista de parto, nossa filha resolveu nascer. As contrações começaram fracas por volta das três da manhã e às três da tarde estávamos no hospital, prontos para recebê-la. Fiquei na espera do anestesista que viria aplicar minha epidural (uma anestesia que funciona da barriga para baixo). Engraçado que quando me perguntavam qual meu plano de parto, a única coisa da qual eu tinha certeza é que queria a epidural. Irônico que foi justamente ela que nos trouxe tantos problemas. Antes de o anestesista chegar nossa bebê desceu muito rapidamente e eu fui de 4cm de dilatação para 6cm, o que fez com que os batimentos cardíacos dela diminuíssem muito. Me colocaram no oxigênio e estouraram minha bolsa, para adiantar o processo. O anestesista chegou e minha doce enfermeira (um raio de sol que Deus mandou em meio a nossa tempestade) me segurou com força enquanto eu aguentava a aplicação na coluna. Assim que ele aplicou eu comecei a sentir um formigamento nas pernas que logo subiu pela coluna e de repente atingiu o corpo todo.

Meus pais e marido estavam do lado de fora do quarto, por causa da aplicação da anestesia que precisa ser sem ninguém por perto além da equipe médica. Tudo o que eles viram em seguida foram vários enfermeiros e o médico empurrando minha cama pra fora do quarto, gritando meu nome, me perguntando se eu conseguia respirar. Meu marido diz que eles gritaram “crash cart”, que é um carrinho com vários aparelhos usados para ressuscitar pessoas. Eu nem consigo imaginar o sentimento deles. Eles tiveram seu trauma, eu tive o meu, e ambos foram tão intensos. Enquanto isso eu estava consciente mas completamente impossibilitada de me mover. Não abria os olhos, não respirava, só ouvia os gritos do médico pedindo que eu reagisse. Tentava fazer ar entrar pelos pulmões, mas quase nada vinha. Eu queria falar pra eles que não conseguia respirar, mas não conseguia. Quando meus olhos resolveram abrir, foi como aquelas cenas de filmes — eu via as luzes do teto do hospital passando rápido. Em um desses momentos me lembro de pensar, “É isso. Jesus, te verei ainda hoje”. Eu gostaria de dizer que senti completa paz, mas a incapacidade de respirar me deixou desesperada por dentro por um tempo, ainda que tivesse a certeza de que estaria com Jesus, caso a respiração realmente não viesse. Depois disso me lembro de ver a cortina da cesárea e ouvir o primeiro grito da Vesper. Me lembro que colocaram ela do lado do meu rosto e disseram, “Francine, sua filha está aqui, você quer beijá-la?”. Eu vi que ela tinha bastante cabelo. Mas não conseguia me mexer ainda.

Acordei na sala de recuperação, pouco a pouco voltando à consciência. Quando dei minha primeira inspirada efetiva foi como se renascesse. Perguntei à enfermeira ao meu lado quais as consequências do que tinha acontecido. À essa altura eu não tinha a menor ideia do que tinha dado errado então assumi que, como o procedimento foi na minha espinha, eu tinha a possibilidade de ter ficado paraplégica ou algo assim (especialmente porque a anestesia ainda não tinha saído completamente do meu corpo e eu não podia sentir minhas pernas). A enfermeira me explicou, um pouco confusa, que não haveria consequência a longo prazo nenhuma, e respirei mais tranquilamente. Glória a Deus! 

Me trouxeram Beau e Vesper, e eu a segurei pela primeira vez. A primeira coisa que eu disse a ele foi, “Eu achei que ia morrer”, e  choramos. Mas também choramos de alegria porque nossa filha estava bem e em nossos braços. O anestesista explicou o que aconteceu. Aparentemente o furo na espinha foi no lugar errado (ou mais profundo do que deveria ser, não tenho certeza) e a anestesia “subiu” minha espinha, atingindo meu diafrágma (ou algo assim, novamente, não tenho certeza), impedindo que eu pudesse respirar. A chance disso acontecer é de 0.02%. Ele também explicou que por causa desse furo no lugar errado eu tinha 50% de chances de ter algo chamado “spinal headaches” (dores de cabeça “espinhais”), que são dores de cabeça intensas que só acontecem quando você senta/fica em pé, mas cessam quando deita. De fato as dores de cabeça começaram a me afligir no dia seguinte. Uma das opções que me foram dadas para parar as dores de cabeça foi fazer um procedimento chamado “blood patch” (“remendo de sangue”) que consiste em novamente furar minha espinha, mas dessa vez inserindo meu próprio sangue com o objetivo de que ele coagule e “remende” o buraco feito pelo primeiro procedimento. A chance de que funcionasse era 95%. Não funcionou. Tive que voltar ao hospital dois dias depois de ir pra casa para um segundo “blood patch” que pela graça de Deus funcionou. 

Queridas, há muito mais que eu poderia relatar, mas creio que está suficiente para que entendam de forma geral a experiência pela qual o nosso Deus me permitiu passar. Eu digo isso porque a realidade é essa — Deus permitiu. Não é como se Ele tivesse piscado e eu tivesse sofrido tudo isso. Ele permaneceu soberano sobre tudo. E é aqui que entram algumas das lições que eu pude aprender com essa experiência. Sei que terei a vida toda para aprender com tudo o que passei, mas quero compartilhar o que já estou aprendendo até aqui. Deixo essas lições para todas vocês aprenderem comigo, especialmente aquelas que também passaram por dificuldades no parto ou pós-parto.

1. Você não é menos mãe por não ter o “parto ideal” (aliás, nem existe “parto ideal”).

Eu acredito que exista hoje uma cultura forte, talvez especialmente entre evangélicas, sobre o parto natural. Vemos como ideal parir sem ajuda de medicamentos ou cirurgias. Eu mesma tinha o objetivo de trazer minha filha ao mundo de forma natural, ainda que quisesse a anestesia. Entretanto, não foi isso que Deus separou para nós. E a verdade? Minha filha chegou ao mundo da maneira que foi preciso para que ela sobrevivesse. E glória a Deus por isso! Eu sei de mães que lutam com a culpa ou um desapontamento extremo caso precisem passar por cesárea. Eu sei na pele a frustração de passar por horas de contrações para no final ter a cesárea. Entretanto, precisamos encontrar paz na aceitação. Se a cesárea foi o tipo de parto que trouxe seu precioso bebê ao mundo, então glória a Deus pela sabedoria de médicos para fazer esse procedimento! Tudo é graça, e qualquer parto que trouxe seu bebê com vida ao mundo é um parto ideal. (Leia o que eu escrevi sobre ser “mãe suficiente”.)

2. Você não está sozinha.

Quando nós temos um recém-nascido nos braços os dias são tão demorados a passar. Em meio a mamadas e trocas de fraldas e noite em claro, nós nos pegamos nas redes sociais, assistindo outras mães que parecem saber exatamente o que estão fazendo. Maquiadas, a roupa do bebê e dela impecáveis, o cabelo no lugar. “O bebê dela deve dormir a noite toda”, pensamos. “Ela sim parece saber como ser mãe”. Mas a verdade é que todas as mães (sim, inclusive aquela influencer do Instagram) pensam estar sozinhas na luta do puerpério. Mas a ironia é que por mais que estejamos isoladas em nossas casas, com nossos bebês, nós estamos TODAS passando pelas mesmas lutas. Por isso não se compare. Você tem sido a melhor mamãe pro seu bebê simplesmente por estar aí com ele. Ninguém mais pode fazer isso, ninguém mais pode ser a mamãe dele. Sinta paz, mamãe. Encontre refrigério e descanso nos braços do Seu Pai como seu bebê encontra no seu.

3. Tudo bem ter perguntas a Deus, apenas não duvide de Seu amor.

Como eu expliquei no relato acima, as probabilidades foram todas contra mim durante minha experiência de parto. 0.02% de chance de ter o problema na epidural. 50% de chance de ter a dor de cabeça espinhal. 5% de chance de não funcionar o procedimento de “blood patch”. Eu me lembro de chorar com Beau em uma das noites no hospital e dizer, “Por que Deus está fazendo isso comigo?”. Eu ainda não sei. Eu me senti roubada de tanta coisa — não fui a primeira a segurar minha filha, não troquei sua primeira fralda, não pude amamentar porque não conseguia sequer sentar sem morrer de dores, mal segurei minha filha na primeira semana de vida dela,… Eu tive várias perguntas a Deus, fiquei como Jó questionando o Divino. Entretanto, em uma dessas noites de desespero, eu percebi que as dúvidas estavam me fazendo, acima de tudo, duvidar do amor de Deus por mim. Comecei a me perguntar se Ele podia realmente me amar enquanto eu não tinha um minuto de paz, sem dor. E nessa noite eu clamei ao Senhor. Eu disse, “Pai, a pior consequência que essa experiência pode ter é me fazer duvidar da Tua bondade. Eu não quero isso. Aconteça o que acontecer, me ajude a não duvidar do Teu amor”. E Ele me deu graça. Ainda que eu tenha muitas perguntas até hoje, não há mais dúvidas de que, mesmo em meio à maior dor, Deus me ama profundamente. Peça a Ele por isso também, querida. Ele responderá. 

4. Leve Depressão Pós-Parto (DPP) e trauma pós-parto a sério.

Eu me conheço. A Francine normal mal podia esperar para ser mãe, para segurar sua filha no colo. Mas a Francine pós-parto não conseguia se conectar com esse bebê que colocaram em seus braços. A Francine normal confia em Deus e descansa nEle. A Francine pós-parto tem uma constante nuvem negra sobre a cabeça (que ela aprendeu que se chama “ansiedade”). Eu sei que meu trauma me mudou (além dos hormônios pós-parto). Eu estou tendo que aprender a me permitir chorar, ainda que eu não tenha motivos pra chorar. Sim, eu tenho uma filha linda e saudável. Sim, meus pais e marido estão comigo me ajudando. Mas eu ainda tenho vontades incontroláveis de chorar. Estou com Depressão Pós-Parto? Talvez. Talvez não. Talvez estou apenas processando o trauma do que vivi. Mas estou levando minhas dores a sério, as físicas e as emocionais/mentais, e buscando ajuda médica e relacional. Estou contando ao meu marido cada sentimento, cada pensamento estranho. Querida, leve a possibilidade de DPP a sério. Converse com alguém caso você tenha pensamentos de machucar a si mesma ou ao seu bebê. Busque ajuda. Fale com seu médico. Peça a alguém que cuide de seu bebê enquanto você dorme. A melhor coisa que você pode fazer para o bem-estar do seu bebê nesse momento é cuidar de você mesma.

5. A dor faz o Evangelho brilhar mais forte.

Primeiro as contrações. Depois a aplicação da epidural. A incapacidade de respirar. O corte da cesárea. As inúmeras injeções e agulhas para soro e medicamentos. O apertar constante do útero já machucado para ver se estava voltando ao tamanho normal. A dor de cabeça espinhal. A dor muscular nas pernas que não foram usadas por uma semana. A profunda dor no coração que eu sentia quase que fisicamente. O Senhor me permitiu aprender que a dor física e emocional me dá o privilégio de tomar parte no Evangelho. Dor que gera vida, não foi isso que Jesus nos ensinou na Cruz? É isso que o nascer de um bebê exemplifica — dores que trazem vida. Sim, talvez eu tenha experimentado uma dose maior de dor do que muitas mulheres. Mas todas as mulheres, qualquer que seja sua experiência de parto, participam dessa realidade. E que privilégio! Nós podemos mostrar ao mundo que a dor tem fim mas a vida que Cristo traz jamais terá. Nosso sofrimento é passageiro, o amor de Cristo é eterno.

6. Deixe Deus usar seus traumas.

Como eu disse, eu não sei porque passei por tudo isso. Mas eu sei o que a Bíblia diz — “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação! É ele que nos conforta em toda a nossa tribulação, para podermos consolar os que estiverem em qualquer angústia, com a consolação com que nós mesmos somos contemplados por Deus” (2 Co. 1:3-4, grifo meu). Se Deus me permitiu passar por tudo isso, o mínimo que eu preciso fazer é usar minha experiência pra fazer a graça dEle brilhar, e consolar outros com o consolo que recebi dEle. Uma maneira de fazer isso é trazendo meu relato aqui para vocês e me permitindo ser vulnerável. Outra maneira é usando minha história para falar de Cristo com quem encontrar. Pudemos fazer isso com algumas das enfermeiras que estiveram conosco no hospital, inclusive. Sempre que eu contar essa história a alguém quero salientar a graça de Deus em nos salvar, em nos restaurar, em nos dar vida após uma quase morte (e falar sobre a verdadeira vida após a morte que só Ele pode dar). 

Queridas, DEUS FOI NOSSA FORÇA E NOSSA SALVAÇÃO, esse é o resumo da minha história. Alguns dias antes de dar à luz eu pedi que o Senhor me desse um verso para memorizar e falar a mim mesma durante as dores do parto. Ele me deu um verso que estava na minha leitura devocional de Isaías: “Eis que Deus é a minha salvação; confiarei e não temerei, porque o Senhor Deus é a minha força e o meu cântico; ele se tornou a minha salvação” (12:2). Eu não sabia na época o quanto esse verso seria significativo, mas hoje eu vejo o quão perfeito ele foi. Ah, quantas vezes eu repeti a mim mesma durante as dores e procedimentos, “Confiarei e não temerei”. Ele foi nossa força e nossa salvação, realmente.

Meu corpo, minha oferta — para o bem da minha família e para a glória de Deus. Amém.