Cristo Em Cada Pensamento (Saúde Mental): O Problema do Mal

“Apesar de conhecer toda a jornada e onde ela me levará, eu a aceito e acolho cada momento dela.” – Fala da personagem Dra. Louise Banks, interpretada por Amy Adams, no filme A Chegada (2016)

Acredito que você, assim como eu, já refletiu sobre aqueles momentos difíceis da vida marcados por sofrimentos, dores e choros. De alguma forma, gostaríamos que Deus nos concedesse a oportunidade de apagar os dias maus, que eles simplesmente não existissem mais em nossas memórias e sensações.

Como também quando assistimos a um noticiário ou ao ler uma matéria na internet nos deparamos com guerras, catástrofes ambientais, violência, fome, doenças, além das notícias de cristãos perseguidos e mortos por amarem ao Senhor; assim nos entristecemos profundamente em busca de uma compreensão para encontrar alguma lógica em tantos males… então, nos perguntamos: por que o mal existe?

E já que não é possível voltarmos no tempo e recebermos de Deus a oportunidade de apagar os dias escuros, talvez seria oportuno sabermos, ao menos, o momento da chegada deles. E é essa a conexão entre a Dra Louise Banks, a personagem do filme A Chegada, do diretor Denis Villeneuve, e o profeta do Antigo Testamento, Habacuque.

No filme A Chegada, a Dra. Louise Banks (Amy Adams) é uma especialista na linguagem humana, gramática e evolução dos idiomas. Ela é recrutada pelas forças militares para decifrar a linguagem de seres extraterrestres, conhecidos como heptapods, que aterrissaram suas 12 naves em diferentes pontos do mundo. Louise precisa descobrir se eles representam uma ameaça à humanidade e ao planeta. Ela se torna a representante dos humanos diante dos heptapods, estabelecendo um elo entre as duas espécies. A busca de Louise para entender a linguagem alienígena revelará mistérios e escolhas que trarão respostas dolorosas para sua vida, mas que poderão salvar a humanidade.

Já no livro de Habacuque, vemos um profeta em aflição que argumenta com Deus, tentando trazer à memória dele o povo que ele mesmo escolheu para si e que estava sendo destruído por seus próprios erros, o que é algo peculiar do livro deste profeta, pois todos os outros profetas têm por pressuposto apresentarem Deus ao povo, enquanto aqui Habacuque apresenta o povo a Deus. No anseio por uma resposta favorável do Senhor ao sofrimento, Habacuque é exposto a uma realidade ainda mais difícil: por causa do pecado do povo de Judá o sofrimento se agravaria com a chegada dos neobabilônicos.   

Os profetas foram homens e mulheres (como no caso da juíza Débora e  de Hulda) que eram escolhidos por Deus para transmitirem sua mensagem na língua humana. Traziam mensagens sobre o futuro, outras sobre advertências e revelavam sobre coisas que estavam em oculto. Além disso, eles também exerciam a função de ponderar e apontar o mal em uma sociedade e também interceder pelo povo junto a Deus.

Tanto Louise como Habacuque possuem a difícil missão de ouvir e comunicar as linguagens para além da nossa compreensão, mensagens que revelam o olhar daqueles que não são afetados pela linearidade do tempo (passado, presente e futuro) e que, estranhamente, nos mostram que os fios que tecem o sofrimento na história humana também formam beleza e  esperança; que mesmo a melodia que nos convida à introspecção com notas graves de melancolia entrelaçadas à suavidade das cordas do violino, também revela a beleza do amargo misturado com a doçura da vida, como na música, On The Nature of Daylight, de Max Richter, que marca o momento em que a Dra Louise está pronunciando a frase com a qual iniciei este texto.

Os profetas, por viverem em uma conexão profunda com o Santo, naturalmente sofrem pelo mal que acomete a sociedade. Para além do sofrimento individual que também os assola diante da própria incapacidade de fazer suas palavras (que procedem de Deus) serem ouvidas e praticadas pelo povo que segue obstinado em seus caminhos, eles também sabem e sofrem a sentença: o mal que sobrevirá a todos, inclusive a justos e inocentes. Lidar com a ideia de que muitos sofrem pelo mal praticado por outros, que são atingidos sem nenhuma explicação lógica, é simplesmente perturbador.

Logo, seria o mal necessário neste mundo para trazer consciência àqueles que agem em rebelião contra a Deus, mesmo que isso faça sofrer os que amam ao Senhor? É o que a teodiceia tenta resolver sobre o problema do mal. 

O filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), embora acreditasse que o universo foi criado por um poder superior, não via os deuses como envolvidos nas questões humanas. Ele propôs reflexões sobre a questão do mal que ainda ressoam em nossos tempos. Epicuro questionava: se Deus quer impedir o mal, mas não pode, então ele é fraco e não onipotente; se pode impedir o mal, mas não o faz, então ele é mau; e se Deus é onipotente e bom, mas não impede o mal, então ele não sabe o que é o mal e nem de onde ele procede, logo, não é onisciente.

Em 1710, o filósofo alemão Gottfried Leibnitz (1646-1716) introduziu o conceito de teodiceia, ou Justificação de Deus, para abordar as reflexões de Epicuro sobre um Deus Todo-Poderoso, bondoso e a existência do mal. Leibnitz argumentou que, mesmo com a presença do mal, Deus continua sendo poderoso, bom e justo.

Ao longo da história, diferentes teodiceias foram apresentadas para justificar a existência do mal e a natureza de Deus. Luiz Sayão, em seu livro Problema do Mal no Antigo Testamento: o caso de Habacuque, destaca cinco tipos principais: a teodiceia do livre-arbítrio, que vê o mal como consequência do uso errado da liberdade dada por Deus; a teodiceia pedagógica, que considera o mal uma experiência necessária para o desenvolvimento humano; a teodiceia escatológica, que promete a restauração final e a eliminação do mal; a teodiceia protelada, que busca compreender o mal no presente sem focar a reparação final; e a teodiceia de comunhão, que vê no sofrimento uma forma de Deus se revelar e se compadecer das dores humanas. Nas palavras do autor: “O sofrimento é transcendido, e aquilo que parecia ser o pior é visto como a ocasião da mais intensa experiência religiosa”.

É interessante percebermos que ao longo da Bíblia não temos em evidência apenas um tipo de teodiceia, mas um amálgama delas. Como vemos em Gênesis, no contexto da queda de Adão e Eva, temos uma teodiceia do livre-arbítrio; em Jó vemos uma teodiceia retributiva (o mal como uma consequência justa pelos nossos atos bons ou ruins); nos livros do período do exílio e pós-exílio temos uma combinação das teodiceias do livre-arbítrio, pedagógica e de comunhão. Já nos livros de Daniel e Apocalipse temos uma teodiceia escatológica, mostrando a intervenção de Deus no fim de tudo para a promoção eterna do bem.

No entanto, tanto em Habacuque quanto no filme A Chegada, destaca-se a teodiceia de comunhão experienciada pelo profeta e pela Dra. Louise. Enquanto Louise aceita e acolhe sua jornada, buscando uma comunhão com seu destino que trará o bem em meio ao mal, encontrando assim significado para o sofrimento, Habacuque, por meio de seu trabalho profético que lhe permitiu uma íntima aproximação com Deus, abraça seu sofrimento e o de seu povo com paixão. O nome Habacuque, cuja raiz no hebraico significa “abraço”, reflete essa atitude. Ele aceita e acolhe a vontade do Senhor, compondo um salmo teofânico onde, ao final, brada em confiança:

“Ainda que a figueira não floresça e não haja frutos nas videiras, ainda que a colheita de azeitonas não dê em nada e os campos fiquem vazios e improdutivos, ainda que os rebanhos morram nos campos e os currais fiquem vazios, mesmo assim me alegrarei no Senhor; exultarei no Deus de minha salvação! O Senhor Soberano é minha força! Ele torna meus pés firmes como os da corça, para que eu possa andar em lugares altos.” (Hc 3:17-19)

Saber dos males que a jornada pode nos trazer não deve ser o nosso foco, porque, no fim,nossas escolhas e ações, ainda que sejam tomadas com toda cautela, não nos isentarão do mal neste mundo, pois neste lado da eternidade o mal se mistura ao bem. Ainda que os objetos da confiança de Louise e Habacuque sejam diferentes, há entre eles uma linha de conexão que é a própria bondade neste mundo pela qual vale a pena lutar e sofrer. 

Louise, no filme, ao imergir no aprendizado do idioma dos heptapods, descobre que pode usá-lo para prever o futuro e ajudar a resolver alguns problemas no mundo. Entretanto, ela também precisa lidar com a descoberta de que, ao escolher ter uma família, esta será destruída por uma doença terrível. Já Habacuque vê os justos dentre o povo de Judá sofrendo pela desobediência de outros. Mesmo clamando por misericórdia para os justos, ele recebe a mensagem do Senhor de que todo o povo, sem exceção, seria esmagado pelos neobabilônicos. 

Ambos enfrentam a crise da dúvida e o sofrimento parece não fazer sentido. No entanto, Louise e Habacuque saem do centro do problema e fixam seus olhos no bem, ressignificando o sofrimento ao olhar com confiança e alegria para a jornada, mesmo sabendo dos espinhos pelo caminho. Nas palavras de Luiz Sayão, autor já citado:

“A fé que Habacuque tem surpreende. De onde procede tanta confiança no divino? Por incrível que pareça, a lógica da obra sugere que procede das suas crises e da sua dor. Aqui dúvida e fé andam juntas, crise e expressão religiosa efusiva são companheiras.

Em vez de entender que o sofrimento e a injustiça sejam obstáculos para a fé em Deus e a afirmação do divino, a obra de Habacuque parece sugerir exatamente o contrário. É a experiência do sofrimento que, no caso do profeta, conduziu-o a uma fé ainda maior. Assim, o problema do mal, ainda que continue como dilema possivelmente sem solução na história do pensamento religioso, pode funcionar como um poderoso motivador da consciência religiosa.” 

Que, mesmo em meio à dor e ao sofrimento, com os olhos cheios de lágrimas, possamos continuar nossas jornadas. Ainda que as linhas que tecem nossas vidas e as melodias que as acompanham estejam carregadas de tristeza, acreditemos em Cristo, o tecelão que entrelaça cada fio com propósito e o maestro que conduz o ritmo e a harmonia da música com todo o zelo. Confiemos n’Ele, que também experimentou nossas mazelas, se compadece de nós e nos guia por vales de sombra e morte, rumo a um verdadeiro e eterno início feliz, onde veremos a obra completa e entoaremos louvores de celebração.


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