Graça Analisa: “The Savage My Kinsman”, Elisabeth Elliot, 1961 (parte I)

Quando eu tinha nove anos de idade senti que precisava ser uma missionária. Em um culto infantil eu ouvi a história de Amy Carmichael, missionária na Índia na década de 1910, e minha admiração por aquela grande mulher de Deus fez meu coração arder por missões internacionais. Mas, eu não fui a única a se sentir afetada dessa maneira pela vida de Amy Carmichael.

Na década de 30 uma mocinha americana, conhecida por todos ao seu redor como Betty Howard, também sentiu uma pressão rumo ao campo missionário após ler as obras de Amy. Mas ao contrário de mim essa mocinha acabou, de fato, indo ao campo. Na década de 1950, Betty Howard, então já conhecida como Elisabeth Elliot, começou seu trabalho com tribos indígenas do Equador. Primeiramente com os índio Quichuas, e posteriormente com os temidos “Aucas”. Em seu livro “The Savage My Kinsman” (“O Selvagem Meu Parente”, tradução livre minha), publicado em 1961, Elisabeth nos conta sobre sua experiência pessoal com os índios Auca, hoje em dia conhecidos como Huaorani*.

Como eu já escrevi muitas vezes sobre a vida de Elisabeth e sua história aqui no nosso blog, vou me limitar nesse post a explicar o mínimo necessário para que possamos prosseguir com a análise sem que ela fique muito prolongada, mas caso você ainda não tenha lido nada sobre ela, te encorajo a ouvir nosso podcast “Heroínas da Fé”, e baixar nosso eBook devocional gratuito, “21 dias com minha amiga Elisabeth”.

Sabemos, através de nossas conversas prévias, que Elisabeth estava casada há três anos, e morando no Equador há pelo menos quatro, quando seu marido, Jim Elliot, foi assassinado pelos índios Auca, juntamente com mais quatro missionários norte-americanos. Essa experiência foi contada por Elisabeth nos livros “Shadow of the Almighty – The Life and Testament of Jim Elliot” (“Sombra do Todo-Poderoso – A Vida e Testemunho de Jim Elliot”, tradução livre minha) e “Through Gates of Splendor” (“Através dos Portais do Esplendor”, Ed. Vida Nova). Nesse livro de nossa análise de hoje, entretanto, Elisabeth se limita a contar, de forma quase que antropológica, sobre sua experiência com os índios Auca, detalhando o estilo de vida daqueles que assassinaram seu marido. É interessante apontar que eu encontrei esse livro na sessão de Antropologia da Biblioteca Municipal de minha cidade, e não na sessão de livros religiosos. Mas essa obra é ainda assim religiosa, uma vez que sua autora era cristã e tudo o que ela relatou partiu de sua perspectiva cristã, de alguém que vivia em meio aos Aucas com um propósito missionário. Entretanto, há momentos em que o relato é quase jornalístico, uma vez que Elisabeth foi uma das primeiras pessoas não-índias que visitaram e viveram com essa tribo, e ela busca mostrar ao mundo quem os temidos e “selvagens” Aucas realmente eram.

A história dessa obra começa quando Elisabeth se encontra viúva, e ainda em meio aos índios Quichua, com quem ela e seu marido trabalhavam. Essa tribo era pacífica, e quando Jim faleceu, eles já estavam evangelizados e com muitos cristãos em seu meio. Se eu não me engano (isso não ficou completamente claro no livro) as viúvas dos outros quatro missionários voltaram aos EUA, ou foram trabalhar de volta nas cidades Equatorianas, mas Elisabeth sentiu que Deus a chamava a permanecer onde estava. Nessa época ela tinha uma filha, Valerie, que tinha dez meses de idade. Apesar de continuar na tribo Quichua, Elisabeth sentia um desejo profundo de ir pregar aos Aucas, e continuar a obra que seu marido e os outros missionários tinham começado. Por isso ela orava a Deus que a mostrasse o que fazer. Ela confessa que, no fundo, não achava que Deus fosse usar uma mulher, viúva e mãe de um pequeno bebê, para terminar uma obra que cinco homens fortes não conseguiram cumprir. Mas, Deus tinha Seus planos.

Elisabeth e Mintaka

Em 1958, dois anos depois do assassinato, Elisabeth ficou sabendo que em uma parte diferente da floresta, onde outros índios Quichua moravam, duas mulheres Aucas tinham aparecido e decidido morar com eles. Perceba que nessa época os Aucas eram completamente inalcançáveis e desconhecidos. Tudo o que se sabia deles era que tinham o costume de assassinar qualquer pessoa que tentasse contato. O único contato feito pelos missionários, até então, era através de auto-falantes em um avião, quando eles tentavam falar, no pouco que conheciam da língua Auca, “Nós gostamos de vocês”; e quando eles jogavam presentes do avião. Além disso, claro, o breve contato que os cinco missionários tiveram com três Aucas dois dias antes de serem assassinados. Por isso, Elisabeth viu nessa “visita” das duas mulheres Aucas a sua grande oportunidade, dada pela graça.

Elisabeth não sequer pensou duas vezes, fez sua mala com cerca de 5 itens (já que eles teriam que viajar a pé pela floresta), e foi rumo à tribo Quichua que hospedava as “selvagens”. Chegando lá, Elisabeth foi bem recebida pelos índios Quichua que a conheciam e com quem ela conseguia conversar (a essa altura ela era fluente na língua deles), mas as Aucas ficaram apreensivas, especialmente porque não podiam se comunicar com ninguém, e aquela mulher era completamente diferente de tudo que elas já tinham visto – alta, loira e de olhos azuis, Elisabeth era quase como um alienígena aos olhos delas. Elisabeth foi aos poucos ganhando a confiança dessas mulheres, e descobriu seus nomes, Mankamu e Mintaka. Depois de alguns dias ali, ela não tinha dúvidas de que o Senhor queria que tanto ela quanto as mulheres Aucas permanecessem naquele acampamento Quichua, e que fora Ele quem abrira a porta para aquele encontro. Elisabeth buscou sua filha Valerie, que ela havia deixado na outra tribo, e elas passaram a morar ali. Elisabeth passava a maior parte de seu tempo tentando aprender qualquer coisa da língua delas, uma vez que seu grande objetivo era compartilhar o Evangelho.

Elisabeth, Mintaka e Mankumu

Algum tempo depois, entretanto, um homem daquela tribo Quichua foi encontrado morto, com lanças pelo corpo, assim como os cinco missionários haviam sido encontrados, e sua esposa havia sido capturada. Não havia dúvidas de que índios Auca haviam feito aquilo. Os Quichua ficaram apreensivos, e começaram a não querer aquelas duas mulheres com eles, pois criam que a morte tinha sido causada por causa da presença delas ali. Mas, Elisabeth continuou confiando no Senhor, mesmo em meio à escuridão do medo. Eis o que ela escreveu:

“Dario me perguntou se eu estava com medo. Não. ‘Eles vão carregar você para longe também’, ele disse. Naquele momento o vento soprou e minha Bíblia abriu em meu colo. ‘Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido’ foi o verso que chamou minha atenção. Eu acreditava nisso? Eu senti, por um pequeno período de tempo, que estava cheia dos Aucas. Eu ficaria muito feliz em deixar a floresta, e ir para longe de tudo o que eles significavam. (…) Mas, eu achei paz no conhecimento de que eu estava nas mãos de Deus. Não na confiança de que eu não seria morta. Não em qualquer falsa segurança de que Deus me protegeria mais do que Ele protegeu meu marido, os quatro missionários, ou Honorio das lanças. Mas, simplesmente em saber que Ele segurava meu destino em Suas duas mãos, e que o que Ele fazia era o certo.” (P. 38, tradução livre minha)

Decidida a não desistir dessa oportunidade que o Senhor dera a ela, Elisabeth fez suas malas e convenceu suas amigas Aucas a partirem com ela, para morarem na vila onde Elisabeth e Jim moravam, e onde eles tinham uma casa. Mankamu e Mintaka aceitaram, e elas foram.

Ali elas ficaram por um tempo, e nesse período Rachel Saint, irmã de Nate Saint, assassinado com Jim Elliot, se juntou à Elisabeth. Ela havia passado um ano nos EUA com Dayuma, uma outra mulher Auca que tinha fugido para morar com os Quichua. Por causa de Dayuma, Rachel sabia, ainda que pouco, como se comunicar com os Auca, e ela foi de grande ajuda no processo de aproximação e também de evangelização deles.

Elisabeth, as Aucas e Rachel Saint

Aquelas mulheres ficaram com Elisabeth e Rachel naquela tribo por alguns meses, até que disseram: “Precisamos voltar para casa”. Uma delas havia prometido a seus filhos que elas voltariam quando uma determinada planta estivesse madura, e o tempo estava se aproximando. “Você deve vir conosco”, elas disseram a Elisabeth. “Nós faremos uma casa para você e Valerie, e outra para Rachel, e vocês podem morar conosco. Eu vou falar pros meus parentes que vocês são boas, e eles vão aceitá-las. Eu vou falar para eles de Deus e que nós devemos ouvir o que Ele diz para vivermos bem. Eu vou contar para eles que vocês são crentes e que nós devemos ser também”.

Depois de muito orar e ponderar, na presença do Senhor, Elisabeth decidiu que era da vontade dEle que ela fosse. Eis o que ela disse sobre o processo de decisão sobre ir ou não:

“Algumas pessoas apontaram para mim, sem rodeios, que eu deveria estar errada. Ignorar o que alguns apontaram como ‘as regras mais elementares da prudência’ seria tolice. Eu certamente não precisava de nenhuma prova a mais sobre a natureza das pessoas que eu havia me proposto a visitar do que o tratamento [que eles deram a] meu marido. Eu sabia que minha decisão era bastante indefensável. Mas eu sabia também do dever colocado diante de mim. Aquele dever eu aceitei como sendo a vontade de Deus. Eu não ouvi vozes, não recebi visões. Mas, me parecia que a Bíblia, que eu considero como sendo um livro de princípios pelos quais devemos viver se quisermos ser realmente livres, estava diariamente me apresentando confirmações para o fato de que eu não tinha entendido a vontade de Deus de forma errada, e então eu prossegui. (…) O princípio é: se o dever é claro, os perigos que o cercam são irrelevantes.” (P. 63, tradução livre minha)

‘Se o dever é claro, os perigos que o cercam são irrelevantes.’ Elisabeth Elliot Click To Tweet

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*O termo “Auca” deixou de ser usado há anos por ser pejorativo. Ele significava “selvagem”, na língua Quichua. Note que todas as vezes em que usei o termo “selvagem” nesse artigo, eu o fiz entre aspas, para enfatizar que não é meu pensamento, nem o de Elisabeth na época, mas sim a forma como eles eram comumente chamados.

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