Graça Analisa: “The Savage My Kinsman”, Elisabeth Elliot, 1961 (parte final)
Leia a primeira parte da análise aqui.
As duas mulheres Aucas, Mankumu e Mintaka, foram primeiro de volta à sua tribo, e mandaram Elisabeth esperar com Valerie e Rachel em um determinado ponto da floresta. Depois de um tempo elas voltaram e conduziram as três “estrangeiras” aos Aucas – para elas a tribo que assassinara seus parentes; para Mankumu e Mintaka, seus parentes. Eis o que Elisabeth escreveu,
“A fé não é necessária onde não existe a consciência de um elemento de risco. Fé, para ser digna de seu nome, precisa abraçar a dúvida. Ir até o território Auca envolvia muitos riscos, pelo que nós sabíamos. Mas, havia também o terreno da nossa fé, a Palavra daquele que é chamado de ‘Autor e Consumador da nossa fé’. Nada mais poderia ter nos trazido àquele lugar. (…) Nós sabíamos que estávamos completamente nas mãos dEle. Não mais naquele momento do que em qualquer outro momento de nossas vidas. Nem estávamos naquele momento cumprindo nosso dever mais do que em qualquer outro momento [de nossas vidas].” (P. 82, tradução livre minha)
A recepção na tribo foi curiosamente tranquila. As estrangeiras nada viram de “selvagem” ou assassino naquele povo. Desde o primeiro contato, os Aucas trataram aquelas mulheres como suas parentes, suas amigas. Claro que Mankumu e Mintaka terem vivido com que elas por um tempo, e terem assegurado a seu povo que estava tudo bem, e que as estrangeiras eram amigas, muito ajudou. Mas, acima de tudo, a graça de Deus abriu as portas para o encontro tão sonhado com aquele povo. Assim que chegaram lá e foram bem recebidos, eis o que orou Fermin, um dos índios Quichua que acompanhara Elisabeth e Rachel até os Aucas:
“Nosso muito amado Pai, o Senhor nos trouxe em segurança a esse lugar. Aqui nós estamos com nossos amigos. Nós dizemos muito obrigado. Nós os amamos, e estivemos orando muito por eles. Nos mostre como viver juntos como irmãos. Abra os corações deles, plante a Sua Palavra neles como sementes que crescerão.”
Me arrepia ver como esse Quichua, que sempre temeu os Aucas e os viu assassinar muitos dos seus, agora os chamava de irmãos, e declarava a Deus o amor que Ele mesmo havia colocado em seu coração.
Valerie, quando chegou à tribo, nada temia. Ela tinha pouco mais de dois anos na época, e havia vivido a vida toda com índios, então para ela os Aucas eram apenas novos amigos. Quando ela viu um dos homens Auca, de cerca de 25 anos, ela olhou para Elisabeth e disse, “Ele parece com um papai. Ele é meu papai?”. Elisabeth disse dessa ocasião,
“Então aqueles que representavam morte para mim eram para Valerie apenas seres humanos, como ela. Ela identificava-se com eles e estava pronta para aceitar como seu próprio pai o homem que havia ajudado a assassinar seu pai. Não havia nada de estranho para ela nos Aucas. (…) Eles eram simplesmente índios, seus amigos. Ela havia orado que o Senhor ‘nos levasse até a casa da Mintaka’. Aqui estávamos, e ela estava feliz.” (P. 83, tradução livre minha)
Me parece maravilhoso ver a pureza dos sentimentos dessa criança, baseados na inocência quanto à situação em que ela vivia. O fato de ela desconhecer a realidade do assassinato de seu pai fez com que ela visse aquele povo como apenas seus amigos. E isso abre nossos olhos: se pudéssemos viver como se as ofensas cometidas contra nós não existissem, poderíamos amar nossos inimigos como Valerie fez. Vê-los como amigos, como parentes. E aí eu penso: se a morte de Cristo na Cruz fez com que nosso passado fosse perdoado e redimido, então podemos viver como Valerie, não desconhecendo as feridas causadas contra nós, mas vivendo como se elas não existissem, ou ao menos como se não fossem suficientes para impedir um amor profundo e sincero por aqueles que nos feriram.
A partir desse momento, Elisabeth passa a descrever, no livro, a vida com os Aucas. Como eu disse, ela, Rachel e Valerie viveram como se fossem um deles. Para os Aucas elas eram estranhas sim, e eles constantemente criticavam-nas quando não conseguiam fazer o que para eles era natural, mas eles as acolheram como família. Isso pode parecer muito estranho, quando pensamos no assassinato dos missionários, e também de Honorio, o índio Quichua. Mas, é preciso que entendamos que os Aucas, ou mais corretamente, os Huaoranis, não eram assassinos por prazer. Eles tinham medo do desconhecido, e a forma mais segura de evitar que o “mal” adentrasse a cultura e vida deles, eram exterminando-o. Eles assassinavam para proteger quem amavam, os seus. Eles acreditavam que os estrangeiros eram canibais.
É bonito ver que, com o tempo e convivência com Elisabeth e Rachel, os Huaoranis reconheceram seu erro ao assassinar os missionários. Eles perceberam que eles os amavam e queriam seu bem. Houve redenção ali.
Mas, apesar de tudo isso, e da amizade e boa recepção, o compartilhar do Evangelho ainda foi difícil. Elisabeth e Rachel passavam grande parte dos seus dias (que começavam às 3, 4 da manhã e terminavam às 6 da tarde) trabalhando na linguagem – tentando entender os Huaoranis e tentando ser entendidas. O grande objetivo delas não era antropológico. Elas não tinham interesse em voltar aos EUA e contar sobre essa “tribo perdida na Amazônia”. Elas queriam que os Huaoranis conhecessem a Cristo. E para isso era preciso ultrapassar o obstáculo da linguagem.
Dayuma, uma Huaorani que havia passado um ano com Rachel nos EUA, pregava o Evangelho a eles. Mas, a cultura de sentar e ouvir era quase inexistente naquela tribo. Quando Dayuma pedia que eles sentassem para ouvir a mensagem, Elisabeth relata que muitos conversavam entre si, outros brincavam ou apontavam pássaros e flores e falavam sobre aquilo. Por isso, havia não só uma barreira linguística, mas também cultural.
Elisabeth relata que era difícil saber se o Evangelho estava tendo efeito. Quando eles oravam, o faziam simplesmente como repetição do que Dayuma fazia, como forma de agradá-la, ou era sincero? Ela não sabia sequer se eles entendiam o conceito de Deus. Os Huaoranis não tinham uma religião, nenhum costume de buscar por coisas espirituais. Então todo o conceito de Deus era novo para eles. Elisabeth disse,
“Mas obviamente a falta de reconhecimento de uma necessidade [espiritual] não prova sua inexistência. Nós somos responsáveis por apresentar Cristo àqueles que estão conscientes do vazio da vida e àqueles que estão completamente satisfeitos com a vida. Uma vez que o homem contempla o Senhor, na integridade de seu coração, ele sabe de sua necessidade.” (P. 157, tradução livre minha)
Grande parte da obra, a partir desse momento, é relatando a vivência com os Huaoranis e as tentativas de viver como eles, para que pudessem pregar a eles. Elisabeth termina seu livro contemplando a pergunta “Estrangeiros ou Selvagens?”. Ela explica que ao final de tudo, os Huaoranis não eram nem uma coisa nem outra, mas de fato seus iguais, seus parentes (daí o nome do livro). Ela percebeu que, apesar das diferenças exteriores, eles eram iguais a ela no pecado, e na necessidade de um Salvador. Eis o parágrafo final da obra,
“Os Aucas são homens. Seres humanos, feitos à imagem de Deus. (…) Nós temos a mesma fonte, as mesmas necessidades, as mesmas esperanças, e um mesmo fim. (…) O reconhecimento lúcido de que os Aucas eram meus parentes foi ao mesmo tempo um novo conhecimento de Jesus Cristo, e de nossa necessidade em comum dEle.” (P. 159, tradução livre minha)
Onde estão os Huaoranis agora?
A obra termina aqui. Elisabeth não explica no livro, mas se sabe que ela passou apenas dois anos com os Huaoranis e depois voltou com Valerie aos EUA, para continuar seu ministério com a escrita. Eu gostaria de ter sabido mais sobre essa decisão, mas ela não a relata na obra.
Para quem ficou curioso quanto ao que aconteceu com os Huaoranis desde então, deixe-me relatar brevemente o que li em um artigo (que você pode ler, em inglês, aqui). Rachel Saint continuou com os Huaoranis durante toda a sua vida, até sua morte em 1993. Seu sobrinho, Steve Saint, filho de um dos cinco missionários assassinados, Nate Saint, juntou-se à ela na obra por alguns anos. Os assassinos de seu pai se tornaram seus “pais substitutos”, e eles viveram vidas de amizade e parceria. Steve escreveu sobre essa experiência miraculosa na obra “End of the Spear” (“Ponta da Lança”, tradução livre minha).
Hoje em dia os Huaoranis crescem em número, uma vez que não mais acreditam em assassinato, mais têm decrescido em fé. A nova geração não conhece as práticas antigas desse povo, de viverem no medo dos estrangeiros, sempre temendo as lanças uns dos outros, e por isso não reconhecem tanto sua necessidade de um Salvador. Entretanto, Steve Saint acredita que a igreja Huaorani vai crescer, conforme seus líderes forem capacitados e desde que os missionários estrangeiros os ajudem a serem independentes (ao invés de fazer com que eles dependam de líderes espirituais estrangeiros).
A forma como o Senhor fez com que aqueles cinco missionários amassem os “Aucas” mais do que a si mesmos, e como Ele usou a viúva, irmã e filho de alguns deles para continuar essa obra é de encher os olhos de lágrimas. O Senhor usou aqueles homens e mulheres para começar uma obra que continua. Não foram os Elliots nem os Saints que alcançaram os temidos “Aucas”, mas Deus. E Ele continua alcançando povos, e unindo pessoas de todas as tribos e raças para glorificarem Seu Santo nome em uma só voz.
A oração que Fermin fez em 1958 tem sido respondida. Deus plantou as sementes nos corações Huaorani e continua florescendo-as.
Deus continua unindo pessoas de todas as tribos e raças para glorificarem Seu Santo nome. Click To Tweet
Pensamentos finais
Eu gostei muito dessa obra, especialmente porque abriu meus olhos para a realidade missionária, que é bem diferentes da imagem romantizada que muitas vezes temos. Elisabeth é sincera em dizer que não foi fácil, mas que o Senhor preparou seu coração para aquela obra, e deu paz em meio às dificuldades. Os registros fotográficos também são maravilhosos – feitos por Elisabeth e Cornell Capa.
Mas, eu tenho uma crítica. Eu gostaria muito que Elisabeth tivesse falado mais sobre seu relacionamento com Rachel e mais sobre essa tremenda mulher de Deus. Ela é apenas citada como estando lá e ajudando no trabalho, mas Elisabeth nada comenta sobre uma amizade entre elas, e se a presença de Rachel ajudou na dificuldade emocional de estar ali. Por vezes eu me pego desejando que Elisabeth fosse mais vulnerável em suas obras. Eu gostaria também de ressaltar que, apesar de Elisabeth ter tomado a iniciativa de ir aos Huaorani e ter sido quem relatou esse trabalho com livros, Rachel foi quem ficou com eles por 35 anos. E eu gostaria de ouvir mais o nome dessa mulher citado quando falamos dessa história.
Ao final de tudo, creio que minha nota a esse livro é quatro estrelas. Se você pode ler em inglês, eu recomendo que adquira e seja inspirada por essas grandes mulheres de Deus, e acima de tudo, seja encorajada a amar ainda mais esse Deus que ama os povos e os alcança, usando pequenos vasos humanos.
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P.S.: Eu descobri que em 1981 Elisabeth escreveu um epílogo às novas edições de “The Savage My Kinsman” explicando todas as dúvidas que aparentemente não somente eu, mas outros leitores tiveram ao final da obra original: por que ela partiu depois de dois anos? Por que Rachel ficou? Quais os malefícios que os “homens brancos” acabaram trazendo aos índios? etc. Recomendo que quem for comprar a obra, compre uma dessas novas edições.
3 Comments
Querida Francine,
Que inspirador a história dessas mulheres de Deus!
Conte-nos sobre o epílogo…
Infelizmente, não leio em inglês ☹️
Que história linda e gloriosa. Bom saber um pouco do testemunho dessas mulheres e fui edificada através delas. Que Deus levante mais mulheres assim em prol do reino e amor pelos pobres.
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