Uma Identidade Restaurada Pelas Garras do Leão (Sobre Complexos de Inferioridade e Superioridade)

Uma das minhas partes favoritas das Crônicas de Nárnia está no livro A viagem do peregrino da alvorada. Nessa crônica, os irmãos Edmundo e Lúcia voltam a Nárnia na companhia de seu primo, Eustáquio. Desde o início da narrativa vemos que Eustáquio tem problemas de relacionamento com os que o cercam. Considera-se o mais sábio, reclama de todas as decisões que os outros tomam, comporta-se como se os demais devessem servi-lo, é altivo e critica tudo e todos com o ar de quem julga saber demais. Mas, por trás de toda essa superioridade, enxergamos um menino triste.  

No decorrer da história, os personagens decidem atracar o navio Peregrino da Alvorada em uma ilha aparentemente deserta. Enquanto os demais providenciam a refeição, Eustáquio prefere descansar ao invés de ajudar e sai às escondidas para um passeio pela ilha. Durante esse passeio o menino acaba descobrindo uma caverna que continha um grande tesouro pertencente a um dragão. Animado com a descoberta e cheio de pensamentos gananciosos, Eustáquio trata logo de pôr um bracelete de ouro e enche os bolsos com toda riqueza possível. Após abastecer-se de seu mais novo tesouro, o garoto decide então descansar na caverna enquanto espera a chuva passar, mas acaba caindo no sono. Ao acordar, para sua surpresa, o próprio Eustáquio, antes menino, havia transformado-se em um dragão. 

A primeira reação de Eustáquio ao perceber que havia sido transformado em dragão foi de alívio ao comparar-se com os outros. Eustáquio já se enxergava como superior e agora era mais poderoso e forte que os demais. Sentia-se pronto para enfrentar e pôr medo até mesmo em seu primo Edmundo ou no príncipe Caspian. No entanto, após ponderar sobre a realidade de não ser menino, mas dragão, Eustáquio viu-se fadado a uma vida solitária e sentiu profunda tristeza. Sua superioridade em busca de autovalorização havia se transformado em uma prisão: “via agora que os outros não eram tão maus como imaginara. E começou a pensar se ele próprio teria sido realmente aquela excelente pessoa que sempre julgara ser.” (As Crônicas de Nárnia, p. 443)       

Inferior ou superior?

Antes de conversarmos sobre os complexos de inferioridade ou superioridade, é preciso frisar que em muitos casos faz-se necessário buscar ajuda profissional a fim de zelar pela saúde mental. Buscar conhecimento e transformação na Palavra de Deus não nos impede de dispor da ajuda que a ciência pode fornecer, como temos reforçado durante nossa série de posts desse mês. Os complexos sobre os quais estamos tratando podem desenvolver-se em graus mais leves ou mais graves. A depender da situação e de como esses sentimentos têm dominado o seu dia a dia, não hesite em procurar ajuda profissional. 

De maneira simplificada, podemos conceituar complexo de inferioridade como a condição de quem se vê sempre inferior aos demais. A pessoa com tal complexo cultiva pensamentos de que suas características físicas, intelectuais ou sociais são inadequadas e de menor valor. Segundo Alfred Adler, primeiro psicólogo a usar o termo complexo de inferioridade em meados de 1907, o sentimento de inferioridade em si não é uma doença, mas um estimulante para o desenvolvimento, uma vez que pode nos impulsionar ao aperfeiçoamento. No entanto, este sentimento pode tornar-se patológico quando deixa o indivíduo deprimido e incapaz de desenvolver-se socialmente de maneira saudável.  

Do outro lado, temos o complexo de superioridade. Os dois complexos parecem contrapor-se, mas são lados de uma mesma moeda. O complexo de superioridade é conceituado como a disposição de alguém a mostrar-se superior aos que o cercam. É a condição de quem tem opiniões exageradamente positivas de si mesmo e supervaloriza suas próprias conquistas e habilidades, traçando linha tênue com a arrogância. No entanto, estudos apontam que o complexo de superioridade nada mais é senão um mecanismo de defesa contra o sentimento de inferioridade. Por trás da superioridade encontra-se alguém que comporta-se de maneira altiva no intuito de compensar o sentimento de se sentir menor.

O ladrão da alegria  

Os complexos de inferioridade e superioridade são marcados por um ponto em comum – a comparação. Esse ladrão da alegria leva a pessoa com complexo de inferioridade a sentir-se pior em relação aos demais à medida que dá atenção exagerada aos próprios erros e fracassos. Por outro lado, mas com mecanismo semelhante, a comparação leva aquele que tem complexo de superioridade a tentar provar-se superior em tudo aos que o cercam, dando-lhe a falsa justificativa para arrogância e altivez. 

Em ambos os casos a comparação faz-se presente de maneira destrutiva. Ao vivermos em constante comparação, minamos nossa alegria de ser o que somos pela graça de Deus. A comparação tira os nossos olhos da graça de quem somos e do que Deus nos deu a fazer e direciona nossa visão para o que não somos ou não temos. 

Afinal, quem sou eu?

Nossa natureza caída busca constantemente reafirmar-se e encontrar sentido tendo por base aquilo que nos cerca. Tentamos definir nossa identidade pelo papel que desempenhamos em um grupo, pelo que temos em relação aos nossos vizinhos, pelo conhecimento intelectual que possuímos. Nós, homens pecadores, fazemos instintivamente de outros homens pecadores nossos padrões para definir quem somos e qual o nosso valor. E essa comparação nos rouba a alegria de simplesmente ser quem Deus nos criou para ser.  

O que os outros pensam que somos, ou mesmo o que achamos que somos, é de menor importância se comparado ao que Deus diz sobre nós. É vazio de sentido firmar padrões humanos e viver por eles, precisamos deixar que a nossa identidade e valor sejam definidos pelo que Deus diz que somos: pecadores miseráveis, mas adotados como filhos, amados com amor eterno e transformados pela graça à imagem de Cristo.

A solução para pensamentos de autodepreciação não está em uma autoestima elevada. Da mesma forma, a solução para pensamentos de exagerada autovalorização não está em depreciar-se ou forjar uma falsa humildade. Como disse Timothy Keller em Ego Transformado: “(…) a essência da humildade resultante do evangelho não é pensar em mim mesmo como se fosse mais nem pensar em mim mesmo como se fosse menos; é pensar menos em mim mesmo” (grifo meu).  

Nossa identidade não está em sermos melhores ou piores em relação ao outro. Nossas conquistas, derrotas, habilidades, finanças, realizações ou fracassos não são nossa identidade. Nem pecados nem vitórias nos definem. Somos o que somos não pelo que podemos ou não fazer, mas pelo que Cristo já fez por nós. 

O Leão e as escamas

Após ser transformado em dragão e ver-se destinado a uma vida solitária, o menino Eustáquio caiu em si e percebeu a forma altiva como vinha agindo por tanto tempo. Sentia-se mais triste que nunca. Seu anseio por ser superior havia lhe cobrado um preço elevado.

Mas, em meio a uma noite de tristeza, Eustáquio viu um Leão aproximar-se. Não era um Leão qualquer, era Aslam, criador e rei de Nárnia. Eustáquio viu-se em temor reverente frente ao Leão que aproximou-se e olhou profundamente nos olhos do triste menino aprisionado em corpo de dragão.

Agora que havia aprendido a lição, Eustáquio ansiava por voltar a ser menino. Nesse intuito, começou a esfregar a própria pele, mas quanto mais esfregava mais escamas de dragão cresciam. Quando ele achava que havia tirado aquela pele de dragão, percebia que outra camada de escamas já brotava embaixo. Era inútil tentar sozinho.

Vendo que seu esforço para tornar-se diferente era em vão, Eustáquio voltou-se para Aslam, que disse docemente: “Eu tiro a sua pele”. A dor de ser despido de suas escamas de dragão, símbolo de sua altivez, não era superior à alegria de voltar a ser menino pelas garras de Aslam.

Na história criada por C. S. Lewis, o encontro de Eustáquio com Aslam não apenas transformou o dragão em menino novamente, mas fez de Eustáquio um menino diferente – “Seria bonito e muito próximo da verdade dizer que, dali por diante, Eustáquio mudou completamente. (…) Às vezes tinha recaídas, em certos dias era ainda um chato. Mas a cura havia começado.” (p. 453).     

As nossas escamas e a cruz

Na história de Lewis o problema de Eustáquio era o complexo de superioridade. A cura, por sua vez, só começou quando Aslam, que nas histórias pode ser visto como  um tipo de Cristo, veio ao seu encontro. Aslam não apenas transformou o dragão em menino, também não fez de Eustáquio uma pessoa diferente. O encontro com Aslam deu a Eustáquio uma nova identidade e um novo coração. A partir dessa nova identidade, a forma como o menino enxergava a si e aos outros mudou. 

Quando nascemos de novo pela ação do Espírito, somos revestidos pela justiça conquistada por Jesus na cruz e ouvimos o Pai apresentar quem somos: “Este é o meu filho amado, de quem me agrado” (Mt 3:17). Somos filhos amados que não precisam provar seu valor por meio de obras. Filhos amados que não precisam enxergar-se como de menor valor quando a cruz prova o contrário.

Os complexos de inferioridade e superioridade são indícios da nossa busca por valor. Queremos ser valiosos e importantes, amados e queridos. Por isso a comparação em busca de encaixar-se nos padrões humanos, por isso o fardo tão pesado de tentar reafirmar quem somos, fardo que não fomos feitos para carregar. Deixemos que o evangelho retire as escamas da nossa busca vazia por valor e nos dê uma nova visão sobre quem somos. 

Olhe para a cruz e veja que suas boas obras não passam de trapos de imundícia. Maravilhe-se com a boa notícia – quão grande é o amor de Deus por você a ponto de não poupar seu próprio Filho para te ter como filho. Olhe para a cruz e veja que para Deus você é mais valioso que todo o ouro deste mundo. Olhe para a cruz e ouça Deus definir quem você realmente é: “Tu és o meu Filho amado; de ti me agrado” (Mc 1:11).


Esse post faz parte da nossa série de postagens de Setembro com o tema “Saúde Mental”. Para ler todos os posts clique AQUI.