Um legado de amor

Eu sei que você não pode ler essas palavras, pois está em um lugar onde nenhuma lágrima entra, e essas palavras saem de mim junto com algumas lágrimas. Mas, eu quero escrevê-las como se você pudesse lê-las, porque eu tenho muita coisa pra falar. E essas coisas, vô, são mais pro meu próprio coração e daqueles que ainda estão aqui na Terra, do que pro seu.

Ontem enterramos teu corpo, vô. Agora ele está junto com o da vó, da sua irmã e dos seus pais. Mas, o nosso pequeno Davi tem razão: o que enterramos era só uma “escultura” sua, vô. Não era o senhor de verdade. Porque o senhor e a vó estão bem longe daqui, numa terra de maravilhas, de luz eterna e canto alegre. E ontem foi um dia lindo, vô. O céu tava bem azul e limpo. Não refletia nossa nova visão de mundo, que agora ficou um pouco mais cinza, um pouco menos colorida, sem teus comentários, tuas balas de café e teu aperto de mão forte.

A igreja ficou lotada, vô. Tanta gente que eu nem conhecia. Tanta gente que o senhor impactou. Tanta gente feliz que o senhor parou de sofrer e foi ficar com Jesus e a vó, mas tanta gente ao mesmo tempo triste de ter que te dizer adeus. Eles te velaram a noite toda. Foi difícil deixar o senhor ir, a gente precisava de mais tempo. Mais tempo pra ouvir suas histórias que pareciam mentiras de tão elaboradas… Como aquela em que o senhor correu da onça, ou matou um jacaré. Mais tempo pra comer teu pé-de-moleque e te ajudar a tirar a casquinha do amendoim. Mais tempo pra dizer “tô orando pelo senhor, vô”, e te ouvir dizer “ora sim, fia”. Ou mais tempo pra dizer “feliz dia dos pais, vô” e ouvir o senhor dizer “pra você também”.

E eu quero crer que essas lembranças vão ficar comigo pra sempre. E cada um de nós, teus filhos, netos, bisnetos, vai ter suas próprias lembranças preciosas pra guardar. Mas, eu sei que, com o tempo, elas se vão. E quando eu estiver velhinha e de cabeça branca, como o senhor tava quando se foi, elas vão ter se apagado da minha memória… Mas, sabe o que não vai apagar, vô? A marca que o senhor deixou. Teu legado. O senhor não nos deixou quase nada físico, só uma casa cheia de lembranças, um pouco de dinheiro no banco, um moedor de cana e outras coisinhas desimportantes. Mas, teu legado, tua herança, não é física.

Tua herança é o amor.

O senhor e a vó nos deixaram algo que nem os cabelos brancos apagarão da nossa memória. Tá correndo nas nossas veias. É o sangue Veríssimo, sangue forte, carregado de amor. São os laços que vocês criaram.

E teu legado anda por aí, vô. Tá nos seus filhos. Eu vi eles carregando teu caixão, e vi o orgulho nos olhos marejados. O orgulho de serem seus filhos. E a responsabilidade de carregarem consigo o dever de ser tudo o que o senhor foi e preencher o lugar que o senhor deixou. Vai ser difícil pra eles, vô. Difícil ser tudo o que o senhor foi – homens fortes, corajosos, honestos, trabalhadores, fiéis. O senhor deixou um exemplo difícil de ser superado, mas eu sei que eles vão tentar. E os filhos deles também. Eles vão olhar pro senhor e lembrar da marca que deixou. Dos calos nas mãos e da testa suada que sustentaram essa família por tantos anos. Dos anos difíceis, dos quais o senhor e a vó fizeram o melhor que podiam. Porque onde faltava dinheiro sobrava amor.

Essa marca que vocês deixaram é tão forte, tão profunda, que só de falar em vocês os nossos olhos enchem de lágrimas. E não é só com a gente que acontece isso, vô. Todo mundo que te conheceu sente tua falta. As meninas que cuidaram de você até o fim, como verdadeiros anjos, sentem muito tua falta. O senhor e a vó marcaram todos ao seu redor.

Escuto histórias da bondade de vocês, do amor cristão, que serão passadas de geração a geração. De como vocês falaram do Evangelho de Jesus a aqueles que amavam. De como a vó trouxe gente necessitada pra dentro da casa dela. De como vocês amaram como filhos a todos os genros e noras. De como o senhor, vô, ajudou a construir o prédio da igreja mesmo quando já estava idoso e doente.

Mas, sabe, de tudo que o senhor construiu nos seus muitos anos de tijolos e cimento, nada será mais eterno e monumental do que a família que o senhor, com mãos fortes, criou. É esse legado que nunca vai passar, mesmo quando os tijolos quebrarem e as histórias cessarem. O amor que vocês deram ao meu pai, e ele deu a mim e eu darei a meus filhos que darão aos filhos deles. Esse laço, esse ciclo sem fim de amor… É esse seu legado, vô. O senhor trouxe sua família aos pés da cruz e se hoje nós conhecemos a Cristo é por causa da sua fidelidade e da vó. E esse legado não tem preço. Essa herança é a mais preciosa que poderíamos ter.

Seu velório tava cheio. Tanta gente que compartilha essa herança que o senhor deixou. E agora resta a todos nós tentar viver à luz do grande exemplo que o senhor e a vó deixaram. Vai ser difícil, mas eu prometo que vamos tentar.

Te amamos, vô. Dá um beijo aí na vó e diz que amamos ela também. E abraça Jesus, agradeça a Ele por mim por ter escolhido te colocar nas nossas vidas. Logo nos encontraremos e O adoraremos juntos, pra sempre.

Espero ansiosa por esse dia.

Até lá vou tentar viver minha vida bem, por aqui, deixando, eu também, um legado de amor.

Em memória de Francisco e Terezinha Veríssimo, meus avós amados.

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Música que escrevi em memória da minha avó, Terezinha, em 2011.