Trabalho e Descanso: Trabalho no lar
Honestamente, o tema deste artigo não é chamativo. Analise comigo: leitoras que estão ativas no mercado de trabalho podem pressupor que será um texto mostrando que o trabalho no lar é sagrado e o secular é profano; leitoras que, hoje, estão trabalhando integralmente no lar e para o lar podem pressupor que será um texto mostrando apenas os desafios e o quanto este ofício é exaustivo, invisível e não remunerado, enquanto a mulher tem tanto a oferecer ao mundo com seus dons e talentos. Porém, opto por uma terceira via, sob uma ótica em que o trabalho no lar é um fardo abençoador e um exaustivo privilégio.
Um fardo abençoador
“O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar.” Gênesis 2:15
“Amar é labutar, e isso é verdade tanto nas nossas famílias, quanto no mundo que Deus tanto amou”, afirma Jen Pollock Michel, em seu livro “Guardando lugar – reflexões sobre o significado do lar”. No dicionário, a definição de “labuta” é trabalhar com perseverança ou batalhar por algo. Durante os catorze anos em que trilhei uma jornada profissional, parecia fazer sentido batalhar por um salário, por reconhecimento e até mesmo por uma transformação rumo à maturidade. Nascida nos anos 90, criada em um contexto em que era inegociável escolher uma profissão para ter um “rumo na vida”, passei mais de uma década acreditando que aquele fardo era abençoador (e por muitas vezes foi). Entretanto, não foi esse o significado imediato que atribuí ao trabalho no lar quando minha filha nasceu e entendemos que Deus estava me direcionando para uma nova estação de trabalho: da porta para dentro.
Desde então, o Espírito Santo tem usado muitas ferramentas para conduzir meu coração a uma perspectiva mais correta sobre o trabalho. Por exemplo, o que aprendi em “Ela à imagem dele”, de Francine V. Walsh: “Quando compreendemos que trabalho não é somente ter um chefe (ou ser um chefe) e receber um cheque no final do mês, mas, sim cultivar o potencial que o Criador colocou no mundo para o bem do nosso próximo e para a glória dele mesmo, então nos libertamos de muitas correntes! Se cumprimos nosso chamado como jardineiras da criação não só em um escritório, mas também em nossas cozinhas, então já não precisamos mais no sentir diminuídas quando vivemos uma fase da vida em que a cozinha parece ser, de fato, o lugar no qual passamos a maior parte dos dias […] Na cozinha ou no escritório, onde quer que Deus nos tenha colocado nessa etapa da vida, ali cultivamos o mundo que ele criou, e exatamente no local em que estamos plantados é que temos a oportunidade de semear o Evangelho de forma única à nossa situação.”
Porém, embora seja um belo conceito para crermos e adicionarmos ao solo fértil de nossas convicções, o ato de “cultivar e guardar” não é leve. Lavar a louça engordurada do almoço, recolher roupas sujas, esfregar o box do banheiro, limpar espelhos, trocar fraldas, fazer comida, passar roupa e regar as plantas não são sinônimos de cenas de contos de fadas. Ao contrário da vida da Branca de Neve, os passarinhos não virão nos ajudar a aspirar o chão e essa labuta vai nos deixar bem despenteadas no fim do dia. Mas, como lembra Jen Pollock, “cuidar do lar é uma forma de falar sobre os fardos domésticos, e não apenas sobre os benefícios. Nós nos enganamos desejando ser libertos para aproveitarmos as bênçãos sem a banalidade de nossas obrigações. Essa é, de fato, uma das mais antigas mentiras gananciosas que contamos a nós mesmos […] cuidar do lar é sobre custo; o custo de seguir um Deus dono de casa que nos diz para constituirmos um lar para outras pessoas neste mundo.”
Encontrar alegria em dias de labuta é uma questão de perspectiva. Podemos ver só o lado do fardo, que é real e parte do processo custoso de obediência, mas, podemos também ver sob a ótica da bênção que é poder refletir um propósito muito maior do que a pia de louças de todos os dias.
Um exaustivo privilégio
Não é extraordinário como a Palavra de Deus nos traz nuances tão drásticas, mas preciosas dos temas ordinários de nossas vidas? Fardo e benção, labuta e amor, responsabilidade e recompensa, exaustão e privilégio. A lógica do Reino sempre vai nos surpreender.
Em seu livro, “The Quotidian Mysteries: Laundry, Liturgy and ‘Women’s Work’”, Kathleen Norris explora os paralelos entre as rotinas da vida doméstica e os ritmos das práticas espirituais, chamando a atenção para a importância de cada um deles. Entretanto, a autora também identifica um sério problema (com o qual eu luto constantemente): a negligência com as tarefas diárias pessoais e domésticas. Inclusive, Kathleen traz um ponto de vista que trata este tipo de negligência como o pecado da acídia que “despreza todo o gesto repetitivo, como se remetesse à Sísifo; ela não liga para o cuidado do lar. Por esse motivo, devemos estar atentos contra a sedução da vida tranquila […] Cuidar do lar aponta para os lugares tênues da vida diária, onde o trabalho, por mais monótono e servil que seja, se torna louvor, testemunhando da vida do Reino de Deus e da sua vontade sendo feita na terra, como é no céu.”
Contextualizando a menção da autora, Sísifo — a quem ela se refere — é um personagem da mitologia grega, considerado o mais astuto de todos os mortais e mestre da malícia. Por odiar seu irmão, tentou traçar um plano para matá-lo e teve filhos com sua sobrinha. Quando o plano foi descoberto, ele recebeu como castigo empurrar uma pedra até o lugar mais alto da montanha da terra dos mortos, de onde ela rola de volta. Tal exemplo ficou tão marcado na cultura que, hoje em dia, o termo “sísifo” é usado para se referir a uma pessoa que faz um esforço rotineiro e interminável, mas não é nada produtivo. Muitas vezes é assim que me sinto, dia após dia; por isso luto contra o desejo de deitar e dormir, ao invés de fazer o que tem que ser feito. Mas cá está o momento da virada de chave: todo este esforço pelo bem do lar, por mais repetitivo que seja, pode ser considerado louvor a Deus e, por isso, um imenso privilégio.
É, sim, uma verdade que ninguém consegue dar conta de tudo e nem é isso que Cristo exige de nós. Se precisar, descanse. Nosso corpo dá sinais de alerta que precisamos ouvir, a fim de não denegrir o lar onde habita o Espírito Santo de Deus. Mas precisamos ser honestas em analisar se realmente estamos lidando com excesso de tarefas ou se há algo em nós que está pendendo para a falta de cuidado por preguiça ou indisciplina. O trabalho no lar é exaustivo e muitas vezes parece invisível. Mas labutamos em nome do amor. Não o amor que nos agradece com flores ou um jantar romântico semana após semana, e sim o amor que nos enche de propósito, direciona nosso olhar ao amado Cristo e ainda nos recompensa com o prazer de tomar banho em um banheiro cheiroso e limpo e de ver nossos filhos usarem roupas bem cuidadas e nossas visitas tomarem um cafezinho em canecas devidamente higienizadas. É muito cansativo, mas é um privilégio que chefe nenhum nos dá.
Entre Martas e Marias
“Marta agitava-se de um lado para outro, ocupada em muitos serviços” Lucas 10:40
Qualquer semelhança com nossas rotinas é mera coincidência. Brincadeiras à parte, eu percebo que o trabalho no lar faz com que as mulheres fiquem constantemente entre Martas e Marias. Ao contrário da maioria das opiniões que criticam ferozmente a amada Marta, prefiro pensar que ela teve um momento controverso. Ela queria uma casa brilhante, cheirosa e arrumada, digna de receber o Salvador do universo. E, se partirmos apenas desse ponto de vista, Maria estava mesmo sendo negligente com esse fardo abençoador e exaustivo privilégio.
O erro, de Marta e o nosso também, é achar que nossas famílias, nossa sociedade, o mundo e o Reino precisam de nossa agitação e ocupação. No Comentário Bíblico “Lar, Família & Casamento: Fundamentos, Desafios e Estudo Bíblico-Teológico Prático Para Líderes, Conselheiros e Casais”, David Merkh alerta que “trabalho excessivo, especialmente quando feito com um espírito de autossuficiência, independência e avareza culmina em frustração. Mas uma vida equilibrada, em que o Senhor constrói a ‘casa’ e preserva seus frutos, desfruta das bênçãos dele.”
Ao contrário do que Marta, motivada por seus muitos serviços, entendeu da situação, Maria não estava negligenciando o trabalho, mas investindo tempo no Senhor que se preocupa mais com o que somos do que com o que fazemos. Maria escolheu a boa parte ao admitir humildemente que precisava estar aos pés do Mestre e que nada no mundo era mais importante do que passar tempo com o amado de sua alma. A poeira poderia ser varrida depois, aquele era o momento de limpar a sujeira invisível, na alma e no espírito.
Querida, o trabalho no lar é uma benção, mas, em nome de Cristo, não troque as primeiras coisas por “muitas coisas”. O nosso tempo com Deus é inegociável, ainda que isso nos custe acordar mais cedo para o momento devocional. Nossas famílias precisam de mulheres integralmente preenchidas pelo Eterno. Então, parafraseando o famoso ditado, não deixe para amanhã o seu tempo de oração de hoje, ainda que isso lhe custe lidar com a louça do jantar só amanhã.
Esse post faz parte da nossa série de postagens de Outubro com o tema “Trabalho e Descanso”. Para ler todos os posts clique AQUI.
5 Comments
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