Seja a Trincheira (Sobre Como Ajudar uma Amiga Vítima de Abuso)

Por volta das 8 da manhã dou entrada no meu plantão para mais dois dias comuns de trabalho. Costumo dizer que não quero ser alguém da lista das estatísticas que trata com frieza as maldades e crimes pelos quais vejo alguém ser preso todos os dias. E posso dizer? 70% dos presos que dão entrada na unidade prisional onde trabalho estão ali por cometerem algum tipo de crime de abuso.

É difícil você manter a cordialidade das normas morais do serviço público e encarar alguém que há algumas horas estava causando dores profundas na vida de alguém que poderia ser uma pessoa amada na sua vida ou simplesmente alguém próximo, do seu convívio.  Pela graça, não passei pela experiência de ouvir da boca de quem amo algo relacionado a abuso, mas não falo isso com plena alegria, porque sei que alguém em algum lugar deste mundo, neste momento, está passando pelos momentos mais dolorosos da sua vida e nisso meu coração dói e tem profunda compaixão.

Olhando para tudo isso, para minha rotina de trabalho, meu trato com aqueles homens criminosos, a luta em não tornar aquilo banal ou indiferente por causa da frequência, o desejo pecaminoso de aplicar meu senso de justiça fora da justiça divina, a gratidão a Deus pelo cuidado para com os meus e a dor no coração ao pensar nas inúmeras vítimas de abuso que existem no mundo, me faz escrever esse texto em lágrimas mas com uma caneta ligeira para escrever as palavras JUSTIÇA, CURA e JESUS.

Minha querida leitora, confesso que não foram dias fáceis. Li, reli, busquei, meditei, orei e em tudo não consegui imaginar ou ter um raciocínio sem sentir tamanha compaixão pelas vidas abusadas. Os números não mentem, o aumento das inúmeras formas de abuso trazem estatísticas avassaladoras. Violência sexual, verbal, psicológica, financeira, as enumerações são tão variadas quanto a capacidade do coração do homem em exercer tamanha crueldade. Tais pecados distorcem a imagem de Deus, e, portanto, são extremamente prejudiciais e nocivos.

E em virtude disso, pensamos em conversar com você, pessoa que sabe ou desconfia que sua amiga ou alguém do seu convívio esteja vivenciando o abuso, para te mostrar maneiras práticas de como ajudar essas mulheres. 

Seja uma trincheira

Se suas dúvidas foram sanadas e de fato sua pessoa querida está mergulhada em um relacionamento abusivo, seja para ela como uma trincheira na guerra. Acolha com sinceridade de coração as suas dores da alma (Gl 6:2). Se ela se abriu pra você e contou alguns fatos que te levaram a enxergar com clareza o abuso, não apenas a direcione para as próximas fases que a ajudarão a iniciar o processo de cura, mas fique com ela, permaneça perto, seja suporte e lugar onde ela saiba que pode contar e no qual pode se esconder (Pv 18:24). Talvez por muito tempo ela prolongou o silêncio sobre o abuso e, envergonhada pela confusão de estar sendo abusada, decidiu abrir-se e contar sutilmente situações que vivia. Procure conhecer sua amiga profundamente. Abra caminho, pacientemente, com intencionalidade e pessoalidade. Seja vulnerável nessa troca assim como ela está sendo com você.  Esteja presente sem choque, sem causar vergonha e sem acusação.

O abuso traz medo, vergonha e até mesmo culpa. Amar intencionalmente essa pessoa não significa ter  todas as respostas. Não há problema em dizer “Não sei exatamente o que você está sentindo, mas eu te amo e estou aqui, acredito em você!”. Ame-a através do ouvir e dando credibilidade às suas dores relatadas, sem menosprezá-las. 

Que tal marcar um encontro com sua amiga? Esses momentos ajudam ela a sair do isolamento social no qual muitas vezes uma vítima do abuso está mergulhada, seja por obrigação ou por não sentir o desejo de sair e socializar. Esse apoio levará ela a sair de um ambiente violento no qual está vivendo, abrindo espaço para conversas mais íntimas. A história de abuso de uma vítima representa uma fração do real abuso, portanto, seja cuidadosa ao apoiar.  Não sendo você conselheira, sugira a ajuda de um aconselhamento bíblico. Mas lembre, mesmo com ajuda externa, não a deixe só aos cuidados do conselheiro ou dos líderes da sua igreja. Afinal, ela veio até você ou você mesma foi direcionada por Deus a enxergar tal situação vivida por ela. Persevere com ela. Ore com ela. Seja uma trincheira onde ela encontra graça, amor e a Palavra de Deus.

Seja canal de apoio prático e de informação

Ofereça ajudas práticas nesses momentos, pois são de grande valia, sendo elas: abrigo em sua casa, ajuda para procurar emprego, apoio com os filhos, companhia para ir a delegacia, indicação de ajuda médica, terapia, advogado, esteja presente no que ela precisar, ajudando sempre com segurança.

Ajude-a a se informar, pois entender o abuso é o primeiro passo para sair dele. Muitas mulheres não conseguem enxergar que estão dentro de um relacionamento abusivo e necessitam que alguém abra seus olhos para tudo aquilo. Apresente conteúdos de vídeo, artigos, com características particulares desse tipo de relação abusiva, como: possessão extrema, comportamento sufocante e controlador, isolamento da família e amigos, modelo rígido de papéis de gênero, ameaças de machucar a si mesmo ou a vítima e suas famílias, culpar as vítimas por seus sentimentos, possuir traumas de origem familiar não resolvidos, entre tantas outras características ou sintomas.

A justiça brasileira embasa o grito de socorro de uma vítima de abuso. Hoje temos legislação própria descrevendo a violência contra a mulher, sujeitando o abusador a penalidades judiciais. Como citei no início do texto, recebo diariamente abusadores na unidade prisional recorrentes de denúncia anônima ou da própria vítima e, portanto, a justiça se faz ouvinte e tem papel ativo em tais situações. A central de Atendimento à Mulher – Disque 180 – presta uma escuta e acolhida às mulheres em situação de violência 24h por dia em todos os dias da semana, em todo o território brasileiro e mais 16 países, bem como o Disque 190 (Polícia Militar – o mais acionado) ou Disque 100 (Direitos Humanos) que também são outras fontes de atendimento.

Essa ajuda não é sobre você, é sobre ela

Dispor de meios como contato rápido e eficiente, planos de segurança para fugir de um perigo iminente, código de pedido de socorro (sinal sutil que ambas entenderiam numa situação aleatória) são outras maneiras de ajudar quando a vítima vive no mesmo lugar que o abusador e não se sentiu pronta para denunciar ou ainda não compreendeu estar vivendo um relacionamento abusivo.

Lembre-se de não pressioná-la sobre separação ou questionamentos do porquê não já ter saído de casa. Tenha paciência e aja sempre no tempo da vítima e não no seu. Em alguns casos são anos para ter a coragem suficiente de deixar o abusador ou até mesmo se abrir sobre as violências. Sua ajuda deve ser incondicional e paciente para entender os traumas, feridas  emocionais que a levaram em um relacionamento abusivo. Lembre-se que as vítimas de abuso, especialmente doméstico, têm sua autonomia retirada. Não se transforme na próxima pessoa de quem ela dependerá. Mostre as opções, todas elas, e depois deixe a vítima decidir o que usar ou não.

Querida leitora, todas essas maneiras de trazer alívio e ajuda são importantes e refletem uma intenção cheia de amor para com sua pessoa amada que vive um relacionamento abusivo. São formas que podem trazer apoio prático à tamanha dor que elas vivem. O resultado desse apoio virá aos poucos, um dia de cada vez, um passo após o outro.

Se você não for a amiga da vítima, mas sim a própria vítima, trago  em cada palavra meus sinceros sentimentos por estar vivendo essa situação. É doloroso, eu acredito, mas assim como num campo aberto de batalha um soldado pode escutar ao fundo o soar do canto de um pássaro como esperança de vida, assim Deus quer te lembrar de se refugiar na soberania e na bondade Dele. Mesmo através  dessa dor, Deus quer te levar a confiar suas experiências sombrias ao Seu plano bom e providencial.

Feche seus olhos por um minuto, traga à mente nosso amado Jesus cravado na cruz, derramando seu sangue e dizendo “está consumado”. A justiça devida foi cumprida nele, por isso creia de todo coração não haverá condenação para você, este mundo passará e eternamente você estará aos braços do Pai.  Requeira a justiça que é devida ao seu abusador, mas lembre-se que a Deus pertence a vingança (Rm 12:19). Deus tem a justiça como parte de quem Ele mesmo é e todo pecado contra Ele merece punição.

Aqui mais uma vez lembro de Cristo, afinal, todos pecamos e somos sujeitos ao preço da punição, mas o Filho de Deus levou sobre si todas as iniquidades que a Ele nunca pertenceram. Jesus é a cura da nossa alma longe da comunhão com Deus por causa do pecado. Somos simultaneamente pecadoras e alguém contra quem pecaram, mas não precisamos provar que somos vítimas e não agressoras, num esforço desesperado de nos persuadir de nossa justiça. Já temos a justiça de Cristo e podemos descansar sobre Ele, nossa cura. Se veja como alguém revestida da justiça de Cristo e ressurreta para uma nova vida com esperança de que, ao depender do poder de Deus, você pode mudar os padrões do passado. 

No fim, o amor constante e a justiça inabalável de Deus irão curar todas as nossas dores. Creia nisso, se agarre a essa certeza e levante as mãos em adoração ao Único que é digno de trazer o refrigério que sua alma necessita.

Coragem, querida. Procure ajuda. Seja a ajuda. Deus nos ajude.


Esse post faz parte da nossa série de postagens de Março com o tema “Abuso”. Para ler todos os posts clique AQUI.