Protestantismo x Catolicismo: a Reforma permanece inacabada?

Há mais de quinhentos anos foi inaugurado o movimento protestante do qual nos consideramos herdeiros. A Reforma, após meio milênio, ainda encontra-se em um mesmo cenário? As mesmas condições que geraram os protestos contra a Igreja Católica continuam a existir de modo que a Reforma permanece inacabada?

Bem, sabemos que conforme o mundo tem seus dias acrescidos, a mudança é algo certo e isso é verdade acerca da dinâmica Católico-Protestante, mesmo depois de quinhentos anos. Houve maior abertura ao diálogo, e alguns deles realmente ajudaram a alcançar um maior entendimento das diferenças e concordâncias entre as partes.

Os dois grupos não estão mais em guerra um contra o outro. O movimento carismático, os grupos de estudos, os grupos pró-vida e outros movimentos de base tem atraído, de maneira não institucional, membros de ambas as comunidades religiosas, apesar das divisões oficiais da igreja. Ambas trabalharam em conjunto na política, na educação, na saúde, na ética, lutam contra pecados perturbadores tais como o aborto, a eutanásia, a eugenia, a violência, a discriminação anti-religiosa. A atmosfera, uma vez rígida, descongelou. Em muitos casos descobrimos que eles são verdadeiros irmãos e irmãs em Cristo. 

Tudo isso tem de certa forma confundido muitos crentes que esperam sinceramente uma unidade entre o rebanho de Cristo. No entanto, apesar dos pontos comuns que os unem, pelo menos em parte, tais como a Trindade, a natureza de Deus, a revelação divina, a pessoa de Cristo e sua crucificação e ressurreição, o Espírito Santo, a imagem de Deus, a depravação do pecado, a iniciativa divina na salvação e a esperança futura. Ainda assim, não podemos abrir mão da verdade essencial, em nome de uma falsa paz. Desejamos essa unidade, mas não podemos tê-la em detrimento do Evangelho de Cristo. As diferenças continuam a existir, e portanto, a dividir. Tomemos alguns pontos, um a um. 

Justificação

A diferença entre Roma e a Reforma nunca disse respeito à realidade do novo nascimento, à santificação ou às boas obras. Em vez disso, diz respeito ao fato de Roma confundir essas inquestionáveis boas obras com o Evangelho de Deus, que é a justificação dos pecadores por meio de uma justiça externa ou imputada, a justiça de Jesus Cristo somente, e não por qualquer coisa presente ou produzida neles. 

De acordo com o protestantismo somos declarados justos, embora continuemos sendo pecadores. A verdade é que Deus “justifica o ímpio” (Rm 4:5) ao imputar ou creditar a justiça perfeita de Cristo a ele. Embora permaneçamos pecadores, Deus se agrada de nós porque fomos revestidos com a justiça de seu Filho obediente. Essas são as boas-novas do Cristianismo. Sem isso, as novas simplesmente não são boas.

Para o catolicismo, “a justificação não é apenas a remissão dos pecados, mas também a santificação e a renovação do homem interior” (Concílio de Trento, decreto sobre justificação, 7). Para Michael Hortan poderíamos esclarecer o que foi dito no decreto acima, da seguinte forma: Deus justifica os que estão fazendo o melhor que podem para merecer um aumento no grau de aprovação diante dele, até finalmente merecerem a vida eterna. Nesse caso, a fusão de justificação com regeneração (novo nascimento) e santificação contradiz o que lemos nas Escrituras em Romanos 3 e 4. 

Salvação

Conforme vimos com relação à justificação, a maneira como Deus salva também vai na mesma linha de pensamento. 

Para os católicos romanos não há salvação fora da igreja católica, pois o sacerdote é como um mediador entre os fiéis e Deus, pois ele é capaz de mediar o perdão de pecados, sendo acrescido a isso os sacramentos. Ou seja, a graça de Deus inicia o processo , e os fiéis cooperam com essa graça através dos sacramentos, para que possam, pouco a pouco, merecer a salvação por meio de boas obras, sendo um processo que dura a vida toda. 

De acordo com a teologia protestante, a salvação vem pela graça somente e isso não vem de nós, é dom gratuito de Deus, conforme lemos em Efesios 2:8-9. Deus é o único agente definitivo que opera a salvação através da pessoa de Jesus Cristo, o qual é o único mediador entre Deus e os homens (Ef 2:5-7, Rm 3:24) capaz de perdoar nossos pecados de uma vez por todas (Hb 9:12) satisfazendo plenamente a justiça de Deus de forma eterna. Uma vez recebendo o dom gratuito de Deus, obtemos a vida eterna por meio de Cristo Jesus, nosso Senhor, nos dando a alegria e o privilégio de sermos feitos filhos de Deus.

Autoridade

Considerando que é a Sagrada Escritura que cria, molda e determina o que cremos como cristãos, os reformadores a destacaram como a única e suficiente fonte de fé e prática. “Sola Scriptura” foi a expressão usada na Reforma Protestante, e significava que a igreja não poderia pregar, ensinar, ordenar ou praticar qualquer coisa contrária à Escritura, ainda que por boas razões. A única autoridade da Igreja residia na interpretação fiel da Bíblia e seu ensino.

Roma exige dos fiéis uma estrutura de autoridade que combine ilegitimamente as Escrituras com a tradição e o papado. Se tratando das Escrituras, a Bíblia católica contém sete livros a mais, os chamados livros apócrifos, os quais não estão contidos no cânon do Antigo Testamento dos livros oficiais para os protestantes, uma vez que esses livros não faziam parte da Bíblia hebraica de Jesus e dos apóstolos. 

A tradição é o ensinamento que Jesus comunicou oralmente aos seus apóstolos, que por sua vez comunicaram a seus sucessores. Vale ressaltar que os protestantes também creem na infabilidade da tradição dos apóstolos como um meio de iluminar e defender o que já foi revelado. Porém, os fiéis católicos romanos creem em um processo revelatório pós-apostólico e evolutivo, para revelar novas verdades, usando de sua própria autoridade como suporte de suas declarações. É basicamente uma “fé na autoridade” com respeito a todos os dogmas da igreja.

Segundo o catolicismo, o papado é o ensino da Igreja, e por meio dele encontra-se a interpretação oficial das Escrituras. O que o Papa pronuncia é dogma infalível e não pode ser revogado. A declaração do catolicismo é muito clara: o pontífice romano, em razão de seu ofício como vigário de Cristo é como pastor de toda a igreja, tem o poder absoluto, supremo e universal sobre a igreja inteira, poder este que ele sempre pode exercer sem empecilhos (Catecismo da Igreja Católica, 882).

Tendo por base essa alegação, me vejo na necessidade de lembrar ao leitor que quando o ministério apostólico chegou ao fim, os ministérios de pastores e mestres continuaram, sendo que quem deve reinar como único Senhor, Rei, Legislador e Revelador de toda verdade a seu povo é Jesus Cristo. Mesmo Pedro, supostamente o primeiro Papa, nada reivindicou para si mesmo, como lemos em sua carta:

“Se alguém fala, faça-o como quem transmite a palavra de Deus. Se alguém serve, faça-o com a força que Deus provê, de forma que em todas as coisas Deus seja glorificado mediante Jesus Cristo, a quem sejam a glória e o poder para todo o sempre. Amém” (1Pe 4:11)

Maria

O papel de Maria continua a ser uma grande diferença entre as duas tradições. Ambas mantêm em comum três pontos: Maria é a mãe de Jesus, o filho de Deus, totalmente divino. Ela é uma mulher abençoada, uma vez que era a mãe do nosso Senhor e Salvador (Lc 1:42, 48), além de ser um modelo de obediência em fé (Lc 1:38, 45).

As divergências surgem quando os católicos incluem a ausência de pecado em Maria, assim como sua virgindade perpétua e assunção corporal aos céus logo após a morte de Jesus, estando hoje sentada ao lado do seu trono. Lembrando que não há nenhuma fundamentação bíblica para tais alegações, mas o que há são versículos contrapondo esses pontos, como lemos em Mateus 1:25(Maria teve relações sexuais com José após Jesus, portanto nãotem virgindade perpétua), Mateus 12:46-50 (Jesus teve irmãos), e Lucas 1:46-47(Maria era pecadora).

Purgatório

O purgatório dentro da doutrina católica procura explicar como um cristão que havia caído poderia ser restaurado à graça. No cerne do seu conceito, o fiel que morre sem estar totalmente purificado irá para o purgatório por um longo tempo para sofrer e pagar pelos seus pecados até se encontrar puro e ir para o céu. Os santos no céu intercedem por ele, bem como os católicos vivos oram por ele e pagam missas em seu benefício (missa do sétimo dia, por exemplo) a fim de encurtar seu período no purgatório.

A teologia protestante discorda dessa doutrina uma vez que ela está baseada em um escrito apócrifo e de uma interpretação incorreta de outros textos bíblicos (1Co 3:15, Mt 12:32). Além disso, uma vez que Jesus é nosso substituto e satisfaz por completo a justiça de Deus em nosso lugar, expiando nossos pecados, a doutrina do purgatório apoia-se sobre o falso evangelho da salvação por intermédio de obras humanas.

Reforma Inacabada

Embora algumas coisas tenham mudado na Igreja Católica Romana, a fim de aproximar católicos e protestantes, muitas diferenças ainda permanecem, não se fazendo possível uma unidade em meio a tais divergências. No contexto atual, tanto o protestantismo quanto o catolicismo necessitam de nova reforma. Assim como o catolicismo foge das verdades eternas em determinados pontos doutrinários fundamentais, muitas igrejas de cunho evangélico fogem do que foi afirmado nas preciosas cinco solas há mais de 500 anos. O Evangelho é sobre Cristo, tudo é sobre ele. Qualquer sinal de desvio que apague ou esconda essa verdade, precisa ser derrubado. 

Apesar disso tudo, louvado seja Deus que permanece soberano sob sua Igreja, e nenhum mal prevalecerá contra ela. Jesus Cristo é sua cabeça, sendo ele próprio o salvador do corpo.


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