As Parábolas de Jesus: O Bom Samaritano

Alguma vez você já deu um mergulho e sentiu um leve medo ao perceber que seus pés não estavam tocando no chão porque a profundidade era maior do que você previa? Ouso comparar essa sensação com o que nossa nova série pode lhe proporcionar. Ao estudarmos os ensinos do próprio Cristo, não se surpreenda quando seu coração for tocado por tamanha profundidade. Sente-se junto aos discípulos e aprenda mais sobre o Mestre e as mensagens de Seu reino.

O caminho para entender as parábolas 

Na região em que Cristo nasceu, as parábolas eram um método antigo e popular de instrução usado comumente pelos povos orientais. Então, embora o seu uso seja uma marca do ministério do Senhor Jesus em relação ao ensino, Ele não foi o criador deste recurso didático. 

Nos livros do Antigo Testamento, a palavra hebraica traduzida por parábola é “mashal” (raíz m_sh_l). Na Septuaginta, a primeira versão dos textos do Antigo Testamento traduzidos para o grego, o termo sugerido é “parabolē”, formado pelo prefixo “para” (ao lado de) e “ballein” (jogar), ou seja “jogar ao lado de”. Por isso, podemos concluir que a parábola é um discurso “jogado ao lado” de outra coisa, como um discurso desviado que afirma algo, mas visando outra realidade. 

O teólogo escocês Patrick Fairbairn resume as parábolas como “uma narrativa ora verdadeira, ora com aparência da verdade, que exibe na esfera da vida natural um processo correspondente ao que existe no mundo ideal e espiritual”. Com isso, ele quer dizer que esse método de ensino guarda referências de situações cotidianas ou que os ouvintes tivessem alguma noção esperada naquelas circunstâncias. 

A parábola do bom samaritano

Registrada em Lucas 10, essa parábola ocorre após o questionamento de um intérprete da Lei sobre quem era seu próximo. 

“Um homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de alguns ladrões. Estes, depois de lhe tirar a roupa e lhe causar muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Por casualidade, um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho e, vendo aquele homem, passou de largo. De igual modo, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou perto do homem e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, aproximando-se, fez curativos nos ferimentos dele, aplicando-lhes óleo e vinho. Depois, colocou aquele homem sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, separou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: “Cuide deste homem. E, se você gastar algo a mais, farei o reembolso quando eu voltar.” Então Jesus perguntou: “Qual destes três lhe parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões?”. O intérprete da Lei respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele.” Então Jesus lhe disse: “Vá e faça o mesmo.”

Analisando o texto

A parábola em questão não relata a cidadania do homem que descia pela estrada e sofreu o assalto, mas há uma probabilidade de ser um judeu. Temos, então, a descrições de outros três personagens:

  • Sacerdote: pela lei, um descendente de Arão que tinha responsabilidades sacerdotais no templo de Jerusalém (Nm 3:38)
  • Levita: pela lei, um membro da tribo de Levi, que deveria proteger o tabernáculo de intrusos e ministrar no tabernáculo, ou seja, transportá-lo de um lugar para o outro (Nm 3: 5-10)
  • Samaritano: Culturalmente, seria impensável que um samaritano ajudasse um judeu. Samaria está ao norte da Judeia e é a região que foi o centro do reino de Israel, rival do reino de Judá. Depois da queda de Samaria, os assírios deportaram boa parte da sua população e estabeleceram ali colonos assírios. Com o tempo, houve uma mescla de etnias, motivo pelo qual os judeus consideravam os samaritanos ritualmente impuros. Ao voltarem do exílio, os samaritanos se opuseram a que os judeus reconstruíssem Jerusalém e o templo e levantaram o seu próprio santuário no monte Gerizim. Por outro lado, não reconheciam outra autoridade doutrinal além dos livros da Lei (o Pentateuco). Por causa de tudo isso, os judeus não aceitavam como legítimo o culto dos samaritanos, que, para eles, eram praticamente pagãos. Negavam-se, portanto, a ter com os samaritanos qualquer espécie de relacionamento ou trato (Jo 4:9).

Os mapas da região mostram que o caminho de Jerusalém para Jericó distava aproximadamente 30 quilômetros, e era uma descida de difícil acesso, com curvas sinuosas, grandes amontoados de pedras e espaços propícios para esconderijos de ladrões. (Local muito parecido com os becos da periferia de sua cidade, não?) 

Analisando o ensino da parábola

Um doutor da lei estava tentando colocar Jesus à prova ao dizer algo depreciativo sobre a lei. Então, nosso inteligente Senhor escolhe utilizar uma situação corriqueira daquela região e daquele período para trazer lições cirúrgicas e de fácil entendimento aos que O ouviam. 

De acordo com a lei levítica, quem tocasse em um cadáver se tornava cerimonialmente impuro (Nm 19: 11-16) e, portanto, não poderia participar dos cultos cerimoniais durante sete dias. A princípio, parecia um bom motivo para que os dois primeiros viajantes evitassem o homem à beira da estrada, afinal ambos tinham responsabilidades espirituais perante o povo e não podiam se contaminar. Por isso, Timothy Keller, em seu livro “Ministérios de Misericórdia” diz que “não devemos nos precipitar em desprezar esses homens, pois podemos descobrir que estamos condenando a nós mesmos”.

O ponto que deve chamar nossa atenção é que a lei tinha o objetivo de prevenir contaminações em uma época onde os cuidados sanitários eram precários. Se um corpo estivesse jogado à beira da estrada, provavelmente estaria lá há dias, já tendo sido contaminado por bichos e vermes. Porém, nenhum deles teve o cuidado de se certificar que o homem estava, de fato, morto. 

A mesma lei que os impulsionava a seguir caminho sem se contaminarem, é a que ensinava que tanto o sacerdote quanto o levita deveriam ser misericordiosos com estrangeiros em necessidade (Lv. 19:34). Enquanto os sacerdotes eram incumbidos da saúde pública, os levitas eram os responsáveis por ajudar os necessitados. Timothy Keller afirma que “esse era um chamado sacerdotal; porém, ambos valorizaram mais suas agendas (repletas de cerimônias e de outras atividades religiosas legítimas) do que seu propósito. E obviamente negligenciaram um preceito importante: obedecer é melhor que oferecer sacrifícios (1 Sm 15:22).”

Ao trazer o indesejado samaritano para o protagonismo, Cristo não está apenas cutucando a ferida que os judeus se recusavam a tratar (a saber, o ódio histórico contra samaritanos), como também reforçava a ordem de amar os inimigos, que já havia sido dada em Lucas, capítulo 6, versículos 27 e 35. 

Quando o texto bíblico utiliza a expressão em português “querendo justificar-se” (Lc 10:29), notamos uma falsa sinceridade, que tinha por objetivo eliminar a responsabilidade pelos outros, fazendo com que algumas pessoas não fossem consideradas o seu “próximo”. A pergunta certa, ao invés de “quem é o meu próximo”, seria “como eu posso ser um próximo?” E a resposta é clara: cuidando de quem necessita, de acordo com nossas condições, e abrindo espaço em nossas agendas atarefadas para estarmos disponíveis aos que sofrem.

O samaritano dos nossos dias

O mandamento “amarás o teu próximo” é, talvez, um dos mais difíceis a se cumprir. Embora o amor esteja em alta estima na sociedade, sua forma mais verdadeira e autêntica ainda está em segundo plano. Amamos aqueles que nos convém, os que não nos atacam, os que não discordam de nossas opiniões, os que não criticam nossas roupas e temperamentos, os que possuem traços de personalidade e de gostos pessoais parecidos com os nossos, os que não têm um passado manchado e “cheiram bem”.

Ao contar esta parábola, Jesus coloca nossas concepções sobre misericórdia ao lado de falsos limites religiosos, desmascarando nossas intenções e nosso comprometimento em obedecê-lO integralmente. Somos, pública ou secretamente, complacentes acomodados. 

Suprir as necessidades de nossos próximos, sejam eles amigos ou inimigos, é um mandamento que somos incapazes de cumprir, pois nosso amor é imperfeito. Conforme a história se desenrola, Cristo está abrindo as cortinas deste quarto escuro (que chamamos de coração) e nos convencendo de nossos pecados e de nossa incapacidade de cumprir uma justiça perfeita, seja olhando amorosamente para nosso próximo, seja suprindo as suas necessidades.

Nem é necessário utilizar as lentes do cristianismo para enxergar a devastação que o pecado causou na sociedade, com desigualdade e violência. De acordo com o “Mapa da Nova Pobreza”, 62,9 milhões de brasileiros (cerca de 29,6% do país) tinham renda domiciliar per capita de até 497 reais. Certamente também afetados pelo contexto da pandemia, cerca de 9,6 milhões de pessoas migraram para o grupo de pessoas em situação de pobreza entre 2019 e 2021. Tínhamos cerca de 281.472 pessoas em situação de rua em 2022 e, em 2021, cerca de 11 milhões de crianças entre 0 e 14 anos viviam em situação de extrema pobreza no Brasil, vivendo com até 11 reais por dia.

Minha amiga Beatriz Rodrigues está cursando Serviço Social pela PUC-SP, e pedi a ela que me relatasse as principais dificuldades enfrentadas nessa área no Brasil, ao que ela respondeu: “Um dos desafios dos assistentes sociais no exercício profissional é deixar de lado o moralismo vazio ao lidar com a população; é deixar de lado a culpabilização dos indivíduos e lidar com os problemas concretos, comuns a muitos, advindos da realidade de um mundo caído e da perversidade do pecado na humanidade.”

Olhando para o ministério de nosso Senhor, vemos que Ele deixa um legado de cuidado com os pobres, miseráveis, marginalizados e menosprezados, como parte de sua essência; portanto, parte também da essência em ser cristão. Mas, será que a Igreja está agindo da forma como Cristo espera? “Enquanto indivíduos, limpamos nossa consciência ofertando aos missionários e crendo que aí termina nosso papel. Saímos de uma das esporádicas ações sociais da igreja com o sentimento de dever cumprido, como se tivéssemos batido nosso cartão de ponto com Deus em relação a esse assunto, e isso fosse o suficiente”, reflete Beatriz.

Cada um, pedindo sabedoria a Deus, deve saber como exercer o chamado da misericórdia. Não há uma receita única, já que cada igreja e cada cristão possui seu próprio contexto social e familiar. Olhe para sua comunidade, cidade, estado e país. Quais necessidades estão gritando para serem supridas? Quem são os que representam o homem caído no caminho a quem você precisa estender a mão? Não seria honesto de nossa parte sugerir qualquer ação. Entenda sua realidade e busque cumprir o ministério de misericórdia que o Senhor está lhe dando o privilégio de cumprir. “O posicionamento da igreja muda quando seus membros mudam”, conclui Beatriz.

Encerro com uma recomendação do saudoso Timothy Keller, “Como agente do reino, a igreja busca levar a cura fundamental dos efeitos do pecado em todas as áreas da vida, entre elas as áreas psicológica, social, econômica e física”. 

Que o Senhor lhe ajude a ser um bom cristão, abrindo mão do que lhe é cômodo para almejar algo maior na ótica do Reino, digno de um servo bom e fiel.


Fontes de pesquisa: 

  • Sociedade Bíblica do Brasil
  • Bíblia de Estudo Almeida Revista e Atualizada (1999)
  • Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada (2017)
  • Livro “Ministérios de Misericórdia”, Timothy Keller (Ed. Vida Nova)
  • Mapa da Nova Pobreza, disponível neste link.
  • Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), disponíveis neste link.
  • 10ª edição do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil, disponível neste link.

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