Os Evangelhos: Marcos

“Quem quiser tornar-se grande entre vocês, que se coloque a serviço dos outros; e quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” Marcos 10:43 a 45 – NAA

Embora saibamos que toda a Escritura é divinamente inspirada, todas nós temos nossas preferências de livros bíblicos, sejam eles do Antigo ou Novo Testamento. Dentre os Evangelhos, me parece haver maior predileção por João, Lucas e Mateus, nesta ordem. O Evangelho segundo Marcos acaba ficando em último lugar, e eu mesma (que prefiro João, pessoalmente) sempre quis entender o motivo, afinal esse Evangelho apresenta um cruzamento de narrativas bastante relevante com os outros sinóticos (Mateus e Lucas).

Portanto, nesses próximos minutos de leitura, desbravaremos juntas as riquezas que esta narrativa nos traz a respeito do Messias, de acordo com a perspectiva peculiar deste escritor.

Autoria

Embora não haja uma identificação explícita, grande parte dos estudiosos (incluindo os pais da igreja primitiva) concordam que Marcos foi o escritor. Não podemos afirmar com veemência, uma vez que a própria Bíblia não revela esta informação, e, portanto, qualquer afirmativa se torna especulação. Em lugar algum o nome Marcos aparece, mas isso também acontece com os demais Evangelhos, afinal não era costume inserir o próprio nome em um relato das palavras e ações do Senhor Jesus. O teólogo alemão Adolf Pohl observa que, em oposição aos Evangelhos apócrifos, “nossos evangelhos canônicos tinham prestígio desde o começo. Seus responsáveis não precisavam destacar-se, por serem conhecidos na cristandade ainda jovem e visível a todos, e nem podiam, porque quem fala realmente nestes livros era, em sentido específico, o Senhor (cf Hb 2:3).”

Alguns comentaristas acreditam que o evangelho de Marcos contém “impressões digitais” do escritor, dando a entender que era sobre ele mesmo que o texto falava, como no capítulo 14, versículo 51, no curioso relato de um jovem que seguia a Cristo, coberto unicamente com um lençol. Pelo relato, é possível deduzir que o mesmo jovem referido no versículo 13 deste mesmo capítulo, poderia ser alguém que morava na casa onde aconteceu a última ceia. Há algumas análises sobre o homem mencionado em 10:17 ser Marcos, seguindo a mesma suposição de que fosse alguém privilegiado financeiramente, dono de muitas propriedades.

É amplamente aceita a hipótese de que este Marcos é o mesmo João Marcos mencionado nos relatos de Lucas, em Atos, e de Paulo, em 2 Timóteo. Este era muito próximo do apóstolo Pedro, como um filho espiritual (1 Pedro 5:13) a quem foram repassadas informações em primeira mão a respeito dos acontecimentos e ensinamentos de Cristo, o qual as preservou em forma escrita no segundo Evangelho, que data de 68 d.C., aproximadamente.

João Marcos nasceu em Jerusalém, filho de Maria (Atos 12:12) e sobrinho de Barnabé, que o levou como auxiliar na primeira viagem missionária de Paulo (Atos 13:5). Este chegou até Perge mas, por razões não especificadas, voltou para Jerusalém, deixando Paulo e Barnabé sozinhos no restante da viagem. Na segunda viagem, Barnabé tentou levar João Marcos novamente, mas Paulo o rejeitou por conta do ocorrido em Perge. 

Aqui, faço uma pausa para reflexão: precisamos de cautela ao analisar alguns fatos, pois não podemos sugerir verdades que a própria Verdade não revelou. Há alguns estudiosos que julgam João Marcos como alguém indigno de confiança, que não aguentou a pressão da viagem missionária e, por isso, voltou para casa. Mas, a Palavra não oferece informações tão específicas assim, e não é nosso papel difundir interpretações tendenciosas, baseadas em percepções pessoais dos fatos. Fiquemos, porém, com a informação básica (e suficiente) de que houve um conflito entre Paulo e João Marcos e, consequentemente, com o apóstolo e Barnabé. No entanto, para a glória de Deus e da expansão do trabalho do Reino, durante os últimos anos de Paulo, João Marcos esteve ao seu lado (Cl 4:10; Fm 24) e foi chamado pelo apóstolo um pouco antes deste ser levado à execução (2 Tm 4:11). Esse fato, por si só, já nos serve como grande ensinamento a respeito de como desavenças pessoais podem ser vencidas pelo perdão e pelo trabalho do Reino.

Conteúdo e estilo de narrativa

Escrito principalmente para o mundo romano, o Evangelho de Marcos apresenta Cristo como Servo do Senhor, enviado para realizar uma obra específica para o Pai. Portanto, é mais um livro de atos do que de palavras, com apenas algumas parábolas e abrindo mão de relatos com longos discursos. Um reflexo dessa “urgência” com que os relatos são apresentados é o uso da palavra grega euthus, que frequentemente é traduzida por “e logo” e “imediatamente”, e que ocorre mais de quarenta vezes no texto grego de Marcos (como por exemplo no capítulo 1, versículos 10, 12, 18, 20, e outros). Dessa forma, os capítulos são escritos de forma simples, movendo-se rapidamente de um episódio da vida de Cristo para outro. 

Como o Servo do Senhor, Cristo cumpre profecias messiânicas como as de Isaías 42:1-21; 49:1-7; 50:4-11; 52:13-53:12; Zacarias 3:8. Outra peculiaridade da narrativa é que há uma quantidade relevante de passagens que mostram os sentimentos de nosso Senhor (veja Mc 3:5; 7:34; 10:21). É interessante observar que, por ser apresentado em seu caráter de servo, não há, portanto, necessidade de genealogia, como Mateus faz com riqueza de detalhes. Afinal de contas, o servo não aponta para si mesmo, mas para seu senhor. Além disso, os gentios, a quem o escritor se direcionava, não teriam interesse em sua linhagem, mas precisavam saber que Ele é o Messias. Por isso, há uma destacada ênfase em seus milagres, ressaltando seu poder como Filho de Deus, o que também se configura como uma das características necessárias para entrar no cânon bíblico.

Embora seja o mais resumido dos Evangelhos, a narrativa de Marcos é, frequentemente, mais viva e detalhada do que os relatos paralelos em Mateus e Lucas – veja-se, por exemplo, a riqueza de detalhes na história do endemoninhado de Gadara (Mc 5:1-20; Mt 8.28-34; Lc 8.26-39). Em relação aos temas, podemos dividir na seguinte sequência:
1– Apresentação do Servo em seu ministério público, 1:1-13;
2 – A obra do Servo, 1:14-13:37;
3 – O Servo e sua obediência até a morte, 14-15;
4 – A ressurreição e a ascensão do Servo vitorioso, 16.

Ao acompanharmos as viagens pela Galileia e Judeia, de acordo com os relatos do segundo Evangelho, podemos perceber o ritmo rápido e urgente que Cristo estabeleceu, mas sem abandonar os traços de amor, gentileza, paciência e firmeza que tocaram tantas pessoas e deixaram uma marca indelével em seus discípulos.

Ênfase no discipulado

Terminando a análise desse belíssimo relato das boas novas de Cristo, quero ressaltar um versículo que saltou aos meus olhos durante o estudo: “Depois, Jesus subiu ao monte e chamou os que ele quis, e vieram para junto dele. Então designou doze, aos quais chamou de apóstolos, para estarem com ele e para os enviar a pregar” (3:13 e 14). A igreja em Roma daquela época vivia perseguições ferozes e martírios, e a linguagem deste escritor transparece seu desejo de fornecer para aqueles cristãos uma narrativa biográfica de Jesus Cristo como Servo e Salvador do mundo, aquele em quem podemos depositar nossa fé diante da perseguição (seja ela qual for), e de ensinar o que significa ser discípulo. 

No verso destacado, vemos claramente o propósito da comissão dos doze. O Mestre os chamou para estarem com Ele, aprenderem dEle, viverem o Reino que Ele estava instituindo e, assim, poderem pregar sobre tudo o que ouviram, viram e conheceram a respeito do verdadeiro Deus. Sobre isso, Adolf Pohl diz que os discípulos deviam viver de modo nunca antes visto com Jesus, com o único objetivo de compreender sua identidade. “Para isso, Jesus dedicou uma parte considerável do seu tempo e esforço a estas poucas pessoas. Sempre de novo lemos em Marcos que ele os chamou de lado para o treinamento discipular, para que um dia pudessem entrar com força em um debate sobre a sua pessoa. […] Só estando com ele em intimidade é que poderiam compreender sua personalidade. Senão, ter-se-iam limitado a um entendimento verbal e intelectual de Jesus, que pode ser adquirido em livros.”

O Evangelho segundo escreveu Marcos pode ser, para nós, um diretório de discipulado, um específico manual de como devemos nos portar diante do Mestre dos mestres, o maravilhoso Servo sofredor, que foi fiel até à morte e não abandona aqueles que O abandonam. Que possamos, encorajadas pelo exemplo do Messias e da coragem dos apóstolos após a ressurreição, responder ao “Ide” de Marcos 16:15 com Marcos 16:20: “E eles foram e pregaram por toda parte, cooperando com eles o Senhor e confirmando a palavra por meio de sinais, que se seguiam.”


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