Os Evangelhos: João 

O evangelho de João é tido por alguns teólogos como o ponto alto da teologia bíblica¹. Mateus apresentou a majestade de Cristo; Marcos, sua humildade de servo; Lucas, sua perfeição como homem; e João, por sua vez, apresenta-nos Jesus como o Filho de Deus. 

Para cumprir seu propósito na escrita, João seleciona 7 milagres relevantes realizados por Jesus: a transformação de água em vinho (2:1-11); a cura do oficial romano (4:46-53); a cura do paralítico em Betesda (5:1-9); a multiplicação de pães e peixes (6:1-13); a caminhada sobre o mar (6:12-21); a cura do cego de nascença (9:1-7) e a ressurreição de Lázaro (11:1-44). Além disso, João destaca 7 afirmações cruciais feitas por Jesus que estavam intimamente relacionadas à revelação que Deus fez de si mesmo no Antigo Testamento como o Eu sou (cf. Ex 3:14): Eu sou o pão da vida (6:35); Eu sou a luz do mundo (8:12); Eu sou a porta (10:9); Eu sou o bom pastor (10:11); Eu sou a ressureição e a vida (11:25); Eu sou o caminho, a verdade e a vida (14:6); Eu sou a videira verdadeira (15:1). 

Séculos depois de João, precisamente em 1942, C. S. Lewis formulou um argumento que se alinha ao propósito de João ao escrever este evangelho, ou seja, atestar que Jesus era o Filho de Deus por meio de suas afirmações e feitos: “Um homem que fosse somente um homem e dissesse as coisas que Jesus disse não seria um grande mestre da moral. Seria um lunático – no mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido – ou então o diabo em pessoa. Faça a sua escolha. Ou esse homem era, e é, o Filho de Deus, ou não passa de um louco ou coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um louco, pode cuspir nele e matá-lo como a um demônio; ou pode prosternar-se a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus.”

Vejamos a seguir pontos importantes para o melhor entendimento deste livro tão relevante para a teologia cristã.

Quem escreveu

Ao lado de Pedro e Tiago, João compunha o círculo de discípulos mais próximos de Jesus, sendo o mais íntimo deles, o discípulo amado (cf. 13:23). Ele esteve presente em momentos cruciais da caminhada de Cristo aqui na terra, como a ressurreição da filha de Jairo, a transfiguração e a angústia no jardim do Getsêmani (cf. Mc 5:37; 9:2; 14:33). Além disso, João foi aquele que esteve junto de Jesus em seu julgamento enquanto os outros discípulos o haviam abandonado além de ter recebido dele a incubência de cuidar de Maria (cf. Jo 18:15; 19:27).

Relatos da tradição contam que João morou em Éfeso até ser banido para a ilha de Patmos, onde escreveu o livro de Apocalipse. Após receber permissão para regressar, João retornou a Éfeso, onde escreveu o Evangelho e permaneceu até a sua morte em ditosa velhice. 

Quando foi escrito e contexto da época

Este livro foi redigido por João no final do primeiro século, quando os outros apóstolos já haviam sido martirizados pela causa do Reino. Por este tempo, uma crença perigosa começara a emergir, o gnosticismo. Essa doutrina pregava, entre outros ensinos, que o homem era dividido entre alma e corpo, sendo o corpo algo mal a ser desprezado. Foi nesse contexto histórico, com o crescimento do gnosticismo, que João escreveu este livro a fim de consolidar a verdade de que Jesus era o Filho de Deus que encarnou para nos salvar.

Um fato interessante sobre esse Evangelho é que ele tem como palavra-chave o verbo “crer” (em grego, pisteuo) que aparece 98 vezes no decorrer do texto de João. Por esse motivo, alguns teólogos dizem que o evangelho de João é o evangelho da fé. 

Ênfase

João não se preocupa em trazer um relato histórico e cronológico dos passos de Cristo. Ele não se preocupa em narrar o nascimento de Jesus, trazer a lista dos doze apóstolos, registrar expulsão de demônios, cura de leprosos ou mesmo os discursos escatológicos de Cristo. Antes, seleciona acontecimentos e, principalmente, discursos chaves, para mostrar que aquele homem que fora crucificado era Deus encarnado.

A começar pelo primeiro capítulo, é possível perceber que a narrativa de João tem um viés teológico mais apurado. A audiência original desse texto conhecia muito bem o relato de Gênesis. Justamente por isso, João começa seu livro com as mesmas palavras usadas por Moisés: “No princípio…” (cf. Jo 1:1). A intenção aqui era deixar bem claro que a Palavra que criara todas as coisas, a Voz que trouxe tudo à existência, o Verbo (Logos) de Deus era o mesmo que havia encarnado em homem (cf. Jo 1:14). Como vimos, na época em que esse texto foi escrito o gnosticismo ganhava força e espalhava sua mensagem de que o corpo material era eminentemente mau. Então, imagine o choque causado por João ao começar seu livro declarando que o logos, a própria Razão, tornou-se carne. 

Essa verdade não foi menos escandalosa para os judeus. Eles entendiam que o Verbo que criara todas as coisas era o próprio Yahweh. Quando foram expostos à verdade de que o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (cf. Jo 1:1), os judeus se encontraram diante de uma afirmação espantosa. Em seu livro Cristianismo Puro e Simples, C. S. Lewis escreveu o seguinte, sobre como essa passagem de João 1 foi recebida pelo povo judeu: “Deus, no idioma deles, se referia ao Ser fora do mundo que o fez e era infinitamente diferente de qualquer outra coisa. Quando você entende isso, você vê que aquilo que esse homem falou era, muito simplesmente, a coisa mais chocante que já foi falada por lábios humanos”

E isso é apenas o início desse maravilhoso livro que, não à toa, é considerado por alguns o santos dos santos da revelação bíblica², a mais importante peça da literatura que há no mundo. Também é aqui que encontramos o primeiro milagre de Jesus (2:1-11); a conversa de Jesus com Nicodemos sobre ser necessário nascer de novo (3:1-21); o encontro com a mulher samaritana (4:1-42); os discursos sobre Jesus ser o pão e a água da vida (6:22-71;7:37-39); a belíssima Oração sacerdotal (17:1-24); a recondução de Pedro ao ministério de pastoreio da igreja (21:15-19), dentre outras passagens basilares para a fé cristã.

O discípulo amado, inspirado pelo Espírito Santo, deixou-nos o relato da graça que foi contemplar o Verbo encarnado com seus próprios olhos, tocá-lo com suas mãos, inclinar a cabeça sobre seu ombro. Um dia, seremos nós a fazê-lo. Nossos olhos o verão, nossos dedos tocarão suas mãos perfuradas pelos pregos da cruz, ouviremos o timbre da sua voz. Que até lá não percamos o maravilhamento que João tentou preservar: o Filho de Deus veio a nós, mergulhou no tempo e espaço para nos buscar e nos levar de volta ao lar. 


  1. LOPES. Hernandes Dias. João: As glórias do Filho de Deus (Comentários expositivos). Editora Hagnos.
  2. 2. ERDMAN, Charles. O evangelho de João. Casa Editora Presbiteriana 

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