O que o Cristianismo Não é: Julgador

Eu tenho uma pergunta incomum para te fazer: se você pudesse escolher um superpoder, qual seria? Bem, a minha resposta é a mesma desde criança: ler pensamentos. Seja na escola, na rua, nos passeios ou no almoço na casa da avó, eu sempre olhava para alguém e perguntava para mim mesma: o que será que ele(a) está pensando agora?

Imagino que deva estar pensando que essa é uma forma estranha de começar um texto sobre o que o cristianismo não é (eu li a sua mente agora, certo?), mas não desista! Acompanhe o restante dessa ideia comigo.

Ler mentes era o meu pedido de infância, mas agora, adulta, percebi que esse superpoder se tornaria o meu pesadelo. Hoje, penso diferente. Já não tenho o mesmo desejo quando criança pelo superpoder que em desenhos parece incrível. Hoje eu não queria mais ter o poder de ler mentes porque se tivesse, eu iria usar para querer sempre saber o que as pessoas estão pensando sobre mim. Será que estão julgando minha forma de me vestir? De falar? De andar? Será que estou fazendo alguma coisa errada? Essas são preocupações que temos todos os dias, concorda? Pelo menos, eu as tenho toda vez que ando na rua e cruzo olhar com alguém. Seria uma verdadeira prisão.

É frequente associarmos o termo “julgar” ou “julgamento” como algo negativo que deve ser evitado. E, infelizmente, é comum as pessoas olharem de fora e imaginarem o cristianismo como um movimento julgador de hábitos, de pensamentos, de escolhas e de posturas. Mas será que o cristianismo é julgador com essa entonação negativa?

Antes de responder a essa pergunta, quero te convidar a observar mais de perto o que a Palavra de Deus tem a dizer sobre “julgamento”. Afinal, o cristão pode julgar? Você sabe o que é julgar, à luz da Bíblia? O que Jesus falou a respeito disso? 

Julgamento segundo a Bíblia

“Somente Deus pode julgar”, “O verdadeiro cristão não julga”, “Ouvi dizer que fulano(a) fez algo terrível (e aqui a pessoa descreve tudo o que fulano fez), ah, mas quem sou eu para julgar?”. Surpreendentemente, tenho ouvido essas afirmações dentro e fora da igreja, vindas de pessoas de diferentes contextos.

Ao observarmos com atenção, percebemos dois comportamentos extremos. Enquanto alguns usam essas afirmações como uma espécie de armadura que os protege de qualquer crítica, outros as usam como uma palavra de condenação em relação à vida do próximo.

A Bíblia nos traz uma perspectiva diferente sobre o julgamento. Para compreendê-la precisamos olhar através das lentes do Evangelho e abandonar a visão completamente negativa que temos da palavra “julgar”.

Em Mateus 7.1, vemos Jesus começando sua fala com a seguinte afirmação: 

“Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também”.

Mateus 7.1

Esse texto, muitas vezes utilizado fora de contexto, traz ensinamentos importantes sobre o julgamento. Em primeiro lugar, a exortação feita por Jesus de “não julgueis” não significa fechar os olhos para as injustiças que ocorrem neste mundo, nem significa ser indiferente em relação à dura realidade que muitas vezes aflige nossos irmãos em Cristo e também aqueles que não conhecem a mensagem de Salvação.

Por outro lado, nessa passagem de Mateus, Jesus também não está dizendo que é completamente proibido fazer qualquer tipo de julgamento, sem exceção, de modo que não possamos formar ou expressar opiniões sobre as outras pessoas. Ou seja, não significa que, como cristãos, devemos abraçar a ignorância de formar opiniões – com base na Palavra, é claro – e mantê-las guardadas em nossos pensamentos secretos.

Então, o que Cristo está nos ensinando sobre o julgar? Nessa passagem, ele condena o ato de julgar sem amor. De forma direta, é o desejo do “eu” de sempre estar acima do próximo. É quando buscamos condenar severamente todas as falhas do outro. O problema não está apenas em sermos firmes com nosso próximo, mas também em usar a condenação alheia para esconder as nossas próprias falhas.

Sobre isso, Jesus deixa bem claro nos versículos 3 e 4 de Mateus 7:

“Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? Como você pode dizer ao seu irmão: ‘Deixe-me tirar o cisco do seu olho’, quando há uma viga no seu?”. 

Mateus 7:3-4

Nesses versículos, o Senhor adverte contra o espírito crítico, o julgamento severo e a tendência de colocar nossa própria justificação acima dos outros. Portanto, a medida para um julgamento correto é quando é feito com misericórdia e amor — e isso é mais tangível quando reconhecemos que somos iguais àquele que está sendo julgado, no sentido de sermos carentes da mesma graça divina.

Olhando para nós mesmos

Querida irmã, neste momento, é importante olharmos para dentro de nós e reconhecermos nossos pecados.

Muitas vezes, temos a tendência de diminuir os outros para nos sentirmos maiores e melhores. Nos colocamos como o exemplo de uma “boa discípula” e, em nossos corações, condenamos aqueles que não seguem essa régua irreal de sucesso. Nas palavras do comentarista bíblico Fritz Rienecker:

“Num instante, podemos assumir o papel de supervisores daqueles que ‘ainda não andam pela fé’. Inadvertidamente, nos colocamos na função de inspetores, fiscalizamos os movimentos do outro, controlamos sua fala, anotamos, julgamos e condenamos. Essa atitude de vigilância é um julgamento sem amor que Jesus reprova. Esse julgamento revela o farisaísmo secreto, que é o pecado mortal dos crentes.”

Fritz Rienecker

Muitas vezes, acreditamos que o outro só terá uma atitude de fé correta quando vivenciar os sinais de conversão que nós vivenciamos, quando fizer exatamente o que estamos fazendo ou quando tiver as mesmas experiências de fé que as nossas. Isso é um engano, pois Cristo é a régua, e não nós.

Como seguidoras de Jesus, nossa ação principal deve ser reconhecer o pedestal de julgamento em que nos colocamos e descer. Devemos nos humilhar e buscar servir ao próximo, como Cristo nos serviu e nos chamou a imitar (João 13.12-17).

O outro lado do julgamento

Agora que compreendemos em qual contexto o termo “julgar” se encaixa, é necessário redefinir a conotação e a importância que atribuímos a essa palavra.

Ao reconhecer que nossa tarefa não é condenar as pessoas ao inferno, abrimos espaço para reconhecermos o ato de julgar como uma forma de auxílio e serviço. Quando discernimos alguma questão alheia à luz das Escrituras, estamos ajudando nosso próximo, também pecador, a encontrar o caminho da sabedoria e a trilhar essa jornada.

O julgamento com discernimento tem como objetivo ensinar, corrigir e aprimorar nosso irmão, que, assim como nós, é falho e depende da graça de Deus para prosseguir em sua jornada até a eternidade.

É importante destacar que, em resposta a uma visão equivocada que alguns têm sobre a capacidade de julgar, afirmamos que o cristão não é impedido de avaliar  situações. Ele é impedido de fazê-lo de modo egoísta, orgulhoso e autocentrado. Todavia, ao examinarmos as Escrituras, percebemos que o julgamento envolve analisar de forma zelosa um ensinamento, uma atitude ou um comportamento à luz da Palavra de Deus, verificando se são de fato justos, bons e agradáveis a Ele (Fp 4.8), com a finalidade de servirmos ao próximo em amor.

Como discípulas de Jesus, devemos abandonar o papel de acusadoras e adotar uma postura graciosa. Cristo nos chama a ensinar com amor, e nesse processo, transbordamos graça na vida do próximo e em nós mesmas, uma graça que também nos alcançou.

Embora não tenhamos o poder de ler mentes nem a capacidade de conhecer o coração do próximo como Jesus era capaz, somos capacitados pelo Espírito Santo a amar nosso próximo, a ajudá-lo a se levantar quando ele tropeçar e a sermos levantados quando também caímos. Devemos olhar para as imperfeições e trazer as verdades que iluminam nossos passos nesta jornada terrena, tornando-a repleta de misericórdia, amor e leveza.


Fontes:

  • Fritz Rienecker, Comentário Esperança, Evangelho de Mateus (Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998), 114–115;
  •  William Hendriksen, Mateus, trans. Valter Graciano Martins, 2a edição em português., vol. 1, Comentário do Novo Testamento (Cambuci; São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2010), 440–442.

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