O adversário óbvio e o adversário inesperado (Sobre feminismo e feminilidade açucarada) 

Nós, mulheres cristãs, temos um adversário óbvio: o movimento feminista. Já há anos os cristãos trazem uma crítica a essa ideologia pois percebemos facilmente (ou ao menos seria bom se conseguíssemos perceber) que é impossível combinar ao Cristianismo qualquer movimento que pregue egoísmo, ou uma necessidade de buscar o seu bem em detrimento do bem do outro. Quando o movimento Feminista diz que a mulher tem o direito de escolher terminar uma gravidez, colocando esse direito individual acima da vida do embrião, o cristianismo percebe ali um erro a ser corrigido. Quando o movimento feminista diz que a mulher tem o direito a uma carreira bem-sucedida, ainda que sua família sofra por isso, o cristianismo percebe ali um erro a ser corrigido. Não porque a mulher tenha menos direitos que o homem, mas porque o cristianismo como um todo prega que ambos, homem e mulher, precisam abrir mão de seus “direitos” em prol do seu próximo. O grande nome do cristianismo, Jesus, abriu mão de sua majestade celestial a fim de ser humilhado, torturado e assassinado por seres humanos. Portanto, o cristianismo não encontra um adversário no feminismo quando esse defende a mulher. O cristianismo declara que o feminismo é um adversário quando ele defende seu direito acima do bem coletivo, porque isso vai diretamente contra os valores cristãos.

Dessa forma, já há alguns anos (décadas até) a igreja vem percebendo um adversário a ser combatido no feminismo. Mas eu acredito que ao focarmos tanto no nosso adversário à direita, acabamos esquecendo de combater o tão-perigoso-quanto adversário à esquerda, que eu tenho denominado de feminilidade açucarada (nota: não quero dizer “direita” e “esquerda” aqui em um sentido político). A autora Rebekah Merkle, no livro Eve in Exile, descreveu algo parecido e chamou de “feminilidade de faz-de-conta” (e as meninas do Benditas Blog explicaram sobre esse tema aqui).

Em meu artigo inicial sobre esse tema eu defini a femaçu (como eu e algumas amigas gostamos de simplificar) como uma feminilidade focada na fraqueza feminina (física e de produtividade), como se a mulher cristã tivesse sido chamada a ser a donzela em apuros no alto da torre esperando o tão sonhado príncipe (e não, ele não é Jesus nesse caso). Mostrei por lá que as mulheres relatadas na Bíblia são qualquer coisa menos donzelas em apuros. Dei exemplos da força delas e por que não fazia sentido para mim compararmos a feminilidade bíblica às princesas dos contos de fadas.

Entretanto, nesse novo texto, gostaria de explanar um pouco mais, a fim de esclarecer alguns pontos importantes. 

Em primeiro lugar, eu compreendo que muito da crítica que recebi partiu de um sentimento de defesa. Quando eu usei o termo feminilidade açucarada, estava de fato estava criticando um tipo de pensamento (que se reflete, claro, em um tipo de prática). Entretanto, eu entendo que o termo “açucarada” é pejorativo e talvez algumas irmãs em Cristo se sentiram atacadas de forma pessoal, como se eu estivesse criticando não ideias, mas pessoas. A essas irmãs peço perdão por quaisquer dores que tenha causado. Meu objetivo, assim como creio ter sido o objetivo dos críticos ao Feminismo que adentrava a igreja, é atacar ideias perigosas e não pessoas. É possível que com o tempo eu encontre um termo que expresse o que quero dizer melhor do que “açucarada”, mas por enquanto me parece ser a melhor expressão e vou continuar utilizando-a.

Em segundo lugar, a femaçu não diz respeito a estética. Acho que essa foi a principal interpretação errada que foi feita do meu conceito. Não quero dizer que vestir-se de forma X ou Y seja errado em si mesmo, porque isso seria nada além de legalismo. A estética não é a raiz, mas por vezes (ênfase no “por vezes”, não sempre) o fruto de uma raiz problemática. Por exemplo, quando vestimos saias rodadas, fazemos tranças e lemos Jane Austen, isso não é errado em si mesmo. Entretanto pode ser (ênfase no “pode ser”, não sempre) um sintoma de um coração desejoso por viver outra época, seja a época da feminilidade vitoriana ou a década de 50 nos Estados Unidos (duas épocas muito retratadas em algumas páginas de feminilidade reformada do Instagram). E qual o problema de querer viver essas épocas? Bom, provavelmente isso vem de um coração descontente com a época que vivemos, e isso é um problema em si mesmo. Mas também porque essas épocas não foram o “paraíso” muitas vezes retratados. A feminilidade vitoriana não expressa o chamado cristão à obra, ao “arregaçar as mangas”, à “mão na massa”, ao serviço; era uma feminilidade delicada ao extremo, que nunca “sujava as mãos”, por assim dizer. E a feminilidade dos anos 50, como Rebekah Merkle bem explica, foi o motivo para a segunda onda do Feminismo dos anos 60. Não podemos ter uma expectativa ridícula da mulher (“seja bonita, tire o pó da casa e faça o jantar — só isso é esperado de você”) sem esperar que elas se rebelem contra essa expectativa. Então, não, meu objetivo nunca foi criticar uma estética específica, mas as possíveis raízes que frutificam nessas estéticas.

Em terceiro lugar, eu tenho percebido que um problema recorrente nos círculos reformados é a dificuldade em aceitar e compreender que a mulher cristã não glorifica a Deus somente como esposa e mãe. Eu não sei se isso é uma questão específica e pontual brasileira, porque eu não vejo essa tendência aqui nos Estados Unidos. Talvez, como acontece com muitas outras questões teológicas, esse esclarecimento chegue ao Brasil com algum atraso, por assim dizer. Um dos grandes problemas da femaçu é ser fortemente prescritiva, ou seja, ditar regras mais do que ajudar a trazer discernimento. Vejo uma tendência em dizermos que o estilo de vida X (nesse caso, o estilo de vida da mulher do lar em tempo integral) é mais bíblico que o estilo de vida Y (seja qual for — solteirice, trabalho fora do lar, etc.). Infelizmente nem paramos para analisar nuances (quais motivos levam essa mulher ao lar ou ao mercado de trabalho?), apenas prescrevemos que ela está certa ou errada, independente de quaisquer circunstâncias — sociais, culturais, financeiras, emocionais — que cercam sua decisão de ficar no lar em tempo integral ou não. O recorte deste artigo não me permite explanar muito mais sobre esse tema, mas é claro que há muito mais a ser dito.

Por fim, quando critico a femaçu, meu objetivo é unicamente trazer de volta à mesa da feminilidade bíblica muitas irmãs que há muito foram excluídas dela, a saber, as solteiras, as esposas que trabalham fora, as mães que trabalham fora, as mulheres sem filhos, as mães solteiras, as divorciadas, as viúvas, as não-brancas, entre outras. Nós criamos uma mesa linda e cor-de-rosa onde se sentam apenas as mulheres casadas com filhos (de preferência vários filhos, inclusive) de classe média e, geralmente, brancas, e mandamos as nossas outras irmãs sentarem-se na “mesa das crianças”. “Vocês podem se sentar com as ‘adultas’ quando casarem-se e procriarem”, dizemos inconscientemente. Eu sinceramente não creio que fizemos isso de propósito ou com malícia. Creio que “compramos” uma ideia distorcida de feminilidade bíblica e acabamos criando uma prática em volta dela. Mas basta, irmãs. É hora de recuperarmos o verdadeiro sentido da feminilidade bíblica e trazermos de volta a cadeira das nossas irmãs que são diferentes de nós. Portanto não, meu objetivo não é trazer divisão ao Corpo de Cristo. Pelo contrário. A divisão já existe. Meu objetivo é desfazer os muros e criar pontes. 

E aqui eu já prevejo as críticas: “Francine, você só ataca, só aponta problemas. Cadê a solução?” E essa crítica é ótima, na verdade. Incrivelmente válida. De fato, eu não quero apenas desconstruir sem construir nada no lugar. Dou graças a Deus pela oportunidade que me deu de escrever um livro inteiro sobre esse tema. Creio que será lá que poderei expor minhas sugestões de soluções, mas também pretendo, aos poucos, ir trazendo algumas dessas noções em forma de posts ou vídeos. Tenham paciência. Foram anos construindo essas ideias, não iremos repensá-las de uma vez, com um artigo ou uma foto no Instagram.

Em conclusão gostaria também de me antecipar às possíveis críticas e dizer que não estou indo contra o casamento ou a maternidade. É uma triste época sem nuance essa na qual vivemos. Se não digo que o casamento e maternidade são a única forma de glorificar a Deus, então devo estar dizendo que sou feminista radical, certo? Por favor, sejamos mais críticos e profundos que isso.

Continuemos a conversa, irmãs. Eu quero muito é fazer a gente pensar, ponderar os livros que lemos, os ensinamentos que aceitamos e colocar tudo isso ao lado da Palavra de Deus para ver se ela os “confirma”. Deus nos ajude a reconhecermos nossos adversários à direita e à esquerda e corrermos para a Cruz.

Em Cristo,

Sua irmã e serva,
Francine Walsh