Manso e humilde (O coração de Cristo)

Nos quatro evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João – é possível contemplar muitos aspectos da vida e obra de Jesus. Podemos vê-lo curando, ensinando, exortando; observamos como ele se relacionava com pecadores e com a própria Lei; lemos relatos de seus milagres e ensinos. No entanto, em apenas um lugar das Escrituras Jesus fala sobre o seu próprio coração:

“Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” – Mateus 11:28-30.

Jesus poderia ter dito “sou sábio e generoso de coração” e estaria certo porque ele de fato é assim. Ou poderia ter dito “sou misericordioso e contente de coração”, ele também é assim. Majestoso, compassivo, perdoador, empático, digno, temível, glorioso… Esses e outros atributos poderiam ser acertadamente atribuídos a Jesus. Então, por que ele escolheu expressar seu coração como manso e humilde?

O que significa o coração?

A palavra coração é de uso comum para nós. Não apenas nos referimos ao órgão do corpo, mas também usamos esta palavra para expressar sentimentos e estados de espírito. Na Bíblia, quando a palavra coração é usada, não faz referência a emoções ou sentimentos, mas ao próprio centro do ser. Na linguagem das Escrituras, o coração é o que define e dirige uma pessoa, é o mais puro retrato de quem alguém realmente é.

O coração é o centro da nossa motivação, é o que rege nossas palavras, ações e reações e, sendo assim, falar sobre o coração é desnudar quem somos. Justamente por isso temos passagens como a de Provérbios 4:23, que nos exortam a guardar o coração porquanto dele procedem as fontes da vida.

Com isso em mente, podemos entender a profundidade que é Cristo falar do seu próprio coração. Nos versículos citados acima, Jesus não está dizendo que seu coração está manso e humilde, como quem se sente momentaneamente assim. Quando Jesus abre seu coração aos discípulos ele está revelando o centro mais profundo de suas motivações, o que lhe é mais íntimo e basilar. Todas as ações, palavras, milagres e ensinos de Jesus estão enraizados nessas palavras: “Sou manso e humilde de coração”.

A disposição do coração de Cristo

Temos a tendência de projetar em Deus nossas preconcepções humanas. Para nós, é impensável alguém tão santo dispor-se a perdoar e sofrer junto com o pecador. É difícil conceber que alguém tão digno e elevado atraia para junto de si os desprezados deste mundo. Você pode pensar “Jesus é santo, e por isso mesmo ele não deve amar alguém como EU. Bem, talvez até ame, mas com um amor bem distante”. E a beleza do evangelho, meus irmãos, é que Jesus não se encaixa em nossas preconcepções, e isso é glorioso!  

Precisamos deixar que a Verdade tome o lugar de nossas suposições sobre Deus, pois isso tem vital importância em nossa caminhada cristã, como disse Dane Ortlund em seu livro “Manso e Humilde”: “A partir de certo ângulo, a vida cristã é a longa jornada de deixar para trás, ano após ano, as nossas suposições naturais de quem Deus é, substituindo-as lentamente pela insistência do próprio Deus de quem ele é.

Sim, ele é o Senhor dos Senhores (1 Tm 6.15), aquele perante o qual todo joelho se dobrará (Fp 2:9-11). E esse mesmo Jesus, inexprimivelmente magnífico e santo, é manso e humilde de coração. O Rei dos reis, aquele que criou as estrelas e conhece cada uma pelo nome, é o mesmo que sente a nossa dor e se compadece dos nossos sofrimentos. É o Jesus que chorou na morte de Lázaro (Jo 11:35) e chora conosco quando ninguém mais vê nossas lágrimas. O Cristo que sentou e comeu com pecadores (Lc 5:29-32) é o mesmo que se assenta conosco em compaixão e não nos nega sua graça.

Dizer que o glorioso, santo e puro Jesus é, em seu íntimo, manso e humilde significa que o Filho do Homem vem a nós, pecadores, de braços abertos. Humilde para tomar a forma de servo e vir ao nosso encontro, manso para abrir os braços para pecadores e encaixar-nos em seu abraço de amor perene do qual jamais nos soltará (Jo 6:37). Esse é Jesus, esse é o nosso Salvador!

No texto original de Mateus 11:28-30, a palavra humilde é empregada no sentido de privação ou rebaixamento pelas circunstâncias. Quando Jesus diz que seu coração é humilde, ele nos fala sobre como ele é aberto, acessível,  pronto a aproximar-se de nós.

A beleza da humildade de Deus é também revelada em diversas passagens do Antigo Testamento, sendo uma das mais destacadas Êxodo 34:6-7. Nesse trecho, Moisés pede que Deus lhe mostre sua glória (Ex 33:18) e o Senhor lhe responde dizendo que fará passar diante de Moisés toda a sua bondade (Ex 33:19). Segundo o próprio Deus, sua glória é sua bondade. Alguns puritanos entendiam que nessa revelação de Deus a Moisés ele estava revelando o seu próprio coração, ou seja, quem ele mais profundamente é.

A reação de Moisés ao contemplar tamanha bondade não é outra senão louvá-lo:

“Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado. Contudo, não deixa de punir o culpado; castiga os filhos e os netos pelo pecado de seus pais, até a terceira e a quarta gerações”.

Observe que nesse trecho também vemos a justiça retributiva de Deus, mas seu aspecto misericordioso e amoroso ocupa a maior parte da descrição. Escrevendo sobre esses versos, Dane Ortlund disse: “Os nossos instintos mais profundos esperam que ele troveje, rodando o martelo, executando seus juízos. Esperamos que a inclinação seja retribuir nossos desvios. Então, Êxodo 34 segura o nosso braço e nos faz parar. A inclinação do coração de Deus é a misericórdia. A sua glória é a sua bondade. A sua glória é a humildade.”

Já nos evangelhos, vemos o coração de Jesus em ação na forma como ele se aproximava de pecadores e comia com eles, como se compadecia com os que sofriam, como deixava vir a ele todos os que se dispunham a encontrá-lo.

Essa inclinação de Cristo não se limitou ao seu ministério terreno, o mesmo Jesus que se compadecia de pecadores e se dispunha em sua direção é o Cristo glorificado que está junto ao Pai ainda hoje para interceder por nós e que prometeu estar conosco até o fim (Hb 13:8; Mt 28:20). Ele permanece o mesmo!

O coração que nos transforma

Jesus é aquele que duramente confronta pecadores não arrependidos e promete punir os que negam seu senhorio, mas é também aquele que abraça docemente o que se achega a ele em busca de misericórdia. O seu coração justo e manso é a pura revelação da glória e bondade de Deus. A doçura do coração de Cristo é como um ímã que ao mesmo tempo atrai e restaura os nossos corações dilacerados pelo peso do pecado.

Foi esse coração que arrebatou o nosso quando o Espírito Santo nos trouxe da morte para a vida. Certamente não é difícil lembrar o quanto ficamos encantados com a beleza de Jesus nos primeiros dias de nossa nova vida cristã.

E o que é essa beleza senão o seu próprio coração? O que é o encanto que nos extasia senão o doce constrangimento de vislumbrar tão manso coração, que não nos dá o que merecemos, mas graciosamente abunda-nos com misericórdia? O que nos faz suspirar por Jesus senão a profunda alegria de saber que o Senhor dos senhores veio ao encontro de pecadores rebeldes para transformá-los em filhos de Deus?

Aquela beleza que nos encantou nos primeiros dias ainda nos encanta e encantará por toda a eternidade. Por vezes, no entanto, estamos tão distraídos que deixamos de contemplar Jesus em nossa vida diária. Se a nossa chama de amor por Jesus sofreu alterações é porque perdemos de vista quem ele é, deixamos de nos encantar com seu manso e humilde coração.

E é quando perdemos de vista a profundeza do coração de Cristo que passamos a duvidar de suas promessas. É no desviar de olhos que deixamos que a chama do Espírito se apague dentro de nós. Então, o que fazer? O que fazer diante da beleza do coração de Jesus? O que fazer quando nossa visão sobre a pessoa de Cristo tornou-se turva a ponto de não mais nos maravilhar? O que fazer quando o pecado nos deixa envergonhados de voltar aos pés da cruz em busca de perdão mais uma vez?

O próprio Jesus nos dá a resposta: “Venha a mim!” (Mt 11:28). O seu convite não se esgotou, o seu abraço não se fechou, o seu amor por nós não esfriou. Tudo que nos cabe é ir. “Venha a mim (…) o meu coração é manso e humilde”. Sem amarras, sem receios, sem condicionais… apenas ir e, enquanto vamos, já podemos vislumbrá-lo vindo ao nosso encontro de braços abertos!

“O que retém os homens é não conhecer a mente e o coração de Cristo (…) A verdade é que ele se agrada mais de nós do que nós dele. O pai do filho pródigo foi o que chegou primeiro no alegre ponto de encontro. Você entendeu? Aquele que veio dos céus, como ele próprio diz no texto, para morrer por você, te encontrará mais do que no meio do caminho, como o pai do filho pródigo fez na descrição (…) Ó, então venha a ele. Se você conhecesse o coração dele, você viria” (Thomas Goodwin, “Encouragements to Faith”).


Esse post faz parte da nossa série de postagens de Dezembro com o tema “A Pessoa de Jesus Cristo”. Para ler todos os posts clique AQUI.