Feridas Profundas na Imagem de Deus (Sobre Abuso Sexual)

Alerta de gatilho: esse post contém o assunto de abuso sexual

Como alguns de vocês já sabem, eu sou a nova escritora do Graça em Flor e louvo a Deus por esta honra e oportunidade que me foram dadas para poder edificar meus irmãos e irmãs em Cristo através da escrita. Aliás, este é o meu segundo texto para este blog que tem edificado tantas vidas com a Palavra de Deus. 

Ao entrar para esta equipe de escritoras e conselheiras agraciadas pelo Senhor com amor e sabedoria, realmente me vi em um novo chamado para florescer na minha caminhada cristã e estou sendo desafiada a romper barreiras para enfrentar questões tanto de ordem pessoal, como também as que envolvem assuntos desafiadores, mesmo sob a ótica cristã, e um deles é a violência sexual. 

Infelizmente, meu primeiro contato com vítimas deste crime hediondo foi na igreja, com uma menina de 9 anos que conheci após o culto e depois, o segundo contato, em um processo judicial, mais uma vez, contra uma criança que tinha entre 3 e 4 anos de idade. Falar ou escrever sobre violência sexual causa pesar em nossos corações, uma sensação de impotência misturada com a tristeza e a frustração de uma pergunta que martela, tal qual os martelos que pregaram os cravos nas mãos e nos pés do nosso Salvador: “onde Deus estava neste momento e por que Ele não impediu?”.  

Espero, com a graça de Deus, e somente por ela, poder trazer uma reflexão sobre o tema, como também paz e esperança aos corações machucados que passaram por esta experiência tão difícil, sendo vítimas ou parentes e amigos dessas vítimas. Oramos para que o Espírito Santo cure vossas almas.   

A origem da violência e seus efeitos 

Segundo a cosmovisão cristã quatro são os pilares sobre os quais a história da humanidade se desenvolveu: criação, queda, redenção e glorificação/consumação. Tudo o que provém do pecado está ligado ao pilar da queda — quando Adão e Eva desobedeceram a ordem do Senhor de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, eles e seus descendentes foram contaminados pelo pecado e nós naturalmente nascemos pecadores e filhos da ira de Deus.

Isto significa que o homem e a mulher são naturalmente aptos a produzirem o mal, quebrando as Leis Morais e Eternas de Deus. Diferente do que vemos na justiça dos homens, em Direito Penal, onde o mal pode ser produzido por negligência, imprudência ou imperícia, como se não houvesse intenção de produzir o resultado; diante de Deus, que sonda todos os corações e segundo a visão bíblica, pecar é praticar o mal de forma intencional pois isso faz parte da nossa natureza caída, portanto, para Deus todo o mal é doloso. 

Com certeza isso não é um chamado à compreensão ou à omissão quanto às transgressões praticadas pelo ser humano já que ele naturalmente está inclinado ao mal, mas que é necessário lutar pelo cumprimento das Leis Morais de Deus em um mundo caído no pecado. E não apenas lutar, mas entender, parafraseando Thomas Jefferson, que o preço pelo estabelecimento da justiça e da paz é a eterna vigilância, logo, precisamos estar sempre alertas para que o mal seja punido e coibido e para tanto ele precisa ser trazido à tona, pois é no oculto que ele se prolifera como uma doença letal.

A Bíblia, diferente dos livros sagrados de outras religiões, traz relatos de crimes ou pecados cometidos por grandes personagens da história de Israel, como também conta sobre as vítimas de tais pecados. Deus sempre trouxe à luz as obras más dos homens como também estabeleceu a Sua reta justiça sobre eles, uma vez que desde a formação do Estado de Israel, logo quando saíram do Egito, as tábuas de pedra dos Dez mandamentos, escritas pelo próprio dedo de Deus, dispunham quais eram os seus preceitos eternos, sua Lei Moral, para que os homens vivessem por ela, sob pena de enfrentarem a ira e a justiça do Senhor.

No caso da violência sexual, a lei mosaica estabelecia como pena mais severa a morte do criminoso por apedrejamento (Dt. 22.24-27) e assim foi estabelecido porque o delito sexual é extremamente invasivo, repulsivo e destrutivo. Porém devemos compreender que as leis de Deus não endossam a vingança por meio da justiça feita com as próprias mãos como aconteceu nos três casos relatados nas Escrituras sobre delitos sexuais, embora no segundo caso os homens agiram, mas sob as ordens de Deus. 

Primeiro temos a história de Diná, filha de Jacó, que sofreu a violência por parte do príncipe de Siquém, seus irmãos Simão e Levi sob o pretexto de vingar a tragédia ocorrida com a irmã, acabaram por cometerem também uma traição e outros assassinatos. Já nos tempos dos juízes, vemos a triste história da concubina do levita que foi cruelmente abusada, seus algozes se refugiaram entre os benjamitas, a ira dos homens de Israel se acendeu e quase a tribo de Benjamim foi extinta porque tentaram esconder os criminosos. Depois, já nos tempos do Rei Davi, temos o relato em 2 Samuel sobre a violência sofrida por Tamar pelo seu próprio irmão, Amnom, que por ser o primogênito seria o próximo rei de Israel, mas foi assassinado em uma emboscada tramada por seu próprio irmão, Absalão. 

Diante das histórias citadas, fica claro que o crime de violência sexual é considerado um grande mal, um ato que precisava ser rechaçado e severamente punido, mas sempre conforme as Leis de Deus, afinal, não podemos pagar o mal com mal, estabelecer a punição pelos pecados  com outros pecados. Porém, apesar da gravidade deste crime e da sua repulsividade, ao longo da história da humanidade, outras violações sexuais continuaram e continuam a ocorrer.

Em tempos de guerra este crime hediondo era usado como tática de conquista, uma das formas mais cruéis de subjugação e humilhação contra os povos conquistados. Em pleno século XXI ainda ouvimos falar de tráfico de pessoas para fins de escravidão sexual, países orientais que encabeçam o ranking de crimes sexuais, casos de omissão e subnotificação por parte das autoridades que deveriam investigar tais crimes; e o que dizer daqueles que justificam a violência sexual por causa das roupas ou até mesmo pela beleza da vítima? Vivemos tempos trabalhosos onde a impunidade e a injustiça se estabelecem dia após dia.

É doloroso falar sobre este tema, mas também é necessário para que a luz seja projetada sobre as trevas e as obras más da humanidade sejam julgadas. A violência sexual é um atentado a imago Dei, a imagem de Deus, fragmentando  a identidade. A alma se torna em cacos, como espelho estilhaçado por uma pedra ou pela queda, a vulnerabilidade não é uma escolha e sim  uma imposição, a pessoa está exposta, sente a sua desvalorização e mais uma vez a pergunta inquietante martela a mente, como o martelo que fixava os cravos no Salvador: “onde estava Deus e por que Ele não impediu?”

Uma testemunha da dor

Eu não pretendo dar detalhes, a ideia não é causar gatilhos, mas há alguns anos, ao final do culto de jovens e menores na minha igreja, conheci a história de uma menina de 9 anos vítima de violência sexual. Lembro-me que o cooperador de jovens nos chamou, eu, minha mãe e mais uma amiga, para orarmos por uma menina que estava acompanhada de sua prima, que era membro da igreja. Ela chorava muito e no momento da oração eu a abracei, e quanto mais clamávamos a Deus mais ela chorava e entrava no abraço, quando terminamos a oração ela ainda estava me abraçando e chorando.

Naquela semana, nos jornais da cidade estava sendo veiculada a notícia de um caso de violência sexual contra uma menina de 9 anos, todos que sabiam da notícia se revoltaram e se entristeceram pelo ocorrido, eu mesma havia lido a notícia e igualmente fiquei inconformada e triste. Ao final da oração, a prima dela chorava muito, nosso líder também chorava, eu mesma já estava chorando e diante daquele abraço apertado que eu recebia e por todo o choro daquela criança fiz a pergunta do que tinha acontecido a ela; foi então que a prima dela em voz baixa me respondeu: “sabe a menina do jornal, a que sofreu o abuso? Então, é ela.”

Quando trabalhamos com jovens e crianças na igreja, as demandas e as dificuldades que eles enfrentam muitas vezes estão relacionadas a problemas de convívio familiar, dificuldades na escola; no caso das crianças é pela energia de querer brincar e não prestar atenção ao culto, mas não podemos imaginar (não queremos imaginar) que coisas tão terríveis possam acontecer com eles também. São nestes momentos que nos lembramos, com mais dor e tristeza, que vivemos em um mundo caído. 

Naquele momento foi como se uma aguda dor tomasse conta do meu coração, eu chorei (e ainda choro ao me lembrar disso) e entrei naquele abraço dela e então nós duas choramos, rasgamos os nossos corações diante do Senhor e sem palavras, mas apenas pelo Espírito que orava a Deus por nós, levantamos um lamento, um pedido de ajuda e consolo, um pedido por justiça e restauração. Permiti-me sentir sua dor, sua desvalorização, sua história estava estampada nos jornais, seu nome não era revelado na notícia, mas ela estava exposta, quebrada pela dor da sua identidade estilhaçada. 

Nestes momentos de tristeza profunda, a pergunta volta a martelar na mente, mais uma vez ela aparece, essa pergunta é como os cravos que foram fixados em nosso Salvador penetrando o nosso coração que grita dentro de nós: “Onde estava Deus e por que Ele não impediu que este crime acontecesse?”. Eu me lembro de ter me afastado do abraço, naquele momento nós nos olhamos, eu segurei o rosto dela com as mãos e disse me lembrando de Isaías 53: “Cristo tomou sobre si as suas dores, minha querida, na cruz Ele sentiu toda a sua dor para que você pudesse ser restaurada agora”.        

Cristo: a redenção em toda violência

Querida irmã e querido irmão que sofreu violência sexual, lembre-se que o nosso Salvador levou sobre si nossas dores e enfermidades, embora em agonia, aflição e opressão, Ele foi perseverante em sua missão, experimentando a ira de Deus em nosso lugar. Ele foi ferido, mas não abriu a sua boca para amaldiçoar seus detratores, Ele se permitiu ser traspassado e esmagado pelas nossas iniquidades e dores, Ele foi castigado para que nós tivéssemos paz e as suas feridas se tornassem a causa da nossa cura, tanto no corpo como na alma (cf. Isaías 53).

Nossa esperança não está neste mundo e enquanto olharmos para ele em busca de justiça e restauração, nos frustraremos porque não há justiça perfeita entre os homens capaz de reparar os danos sofridos por meio de um crime tão hediondo, mas há para nós uma esperança de cura quando fixamos nossos olhos e coração em dois momentos da história da humanidade: Cristo crucificado vencendo a morte e o pecado, e Cristo glorioso retornando para estabelecer seu Reino eterno de justiça e paz.

É importante lembrarmos que a injustiça sofrida aqui é a causa da manifestação da ira e da justiça de Deus, Ele nunca deixou de executar seus juízos sobre a humanidade que segue caminhos tortuosos. Em sua Palavra, Deus nos diz que Ele é um Justo Juiz que está com seu arco armado contra aqueles que não se convertem dos seus maus caminhos (Sl 07.11-12), como também nos diz que nada fica oculto aos seus olhos (Mc 4.22 e Sl 139). Ele não é apenas um Deus Onisciente, mas Onipotente e Onipresente e a vingança contra o mal virá Dele (Rm 12.19). Ele é perfeito e nunca erra em seus julgamentos.   

Porém, devemos empreender todos os nossos esforços em busca da justiça diante dos homens, pois esse atributo de Deus é comunicável a nós, mesmo a ideia de tribunal de julgamento dos homens é inspirada na Justiça Divina, Deus quer que a verdade seja estabelecida e o infrator seja punido.

Por isso busque ajuda, abra seu coração para pessoas de confiança, não deixe que a vergonha e o medo impeçam que você busque justiça, seja discipulado, denuncie o mal que muitas vezes foi praticado dentro da igreja, ou no meio da sua família, leve ao conhecimento das autoridades policiais e mova ação na Justiça. Oro para que vocês sejam fortes e corajosos, para que não se apavorem diante do mal que sofreram, para que não cedam às pressões, manipulações e chantagens, porque o Pai nunca os deixará e nem os abandonará (Dt 31.6).

Lembrem-se da coragem que Cristo teve por vocês, por nós, em absorver a ira de Deus para que fôssemos libertos do poder do pecado e da morte, ele foi ferido para que nós fôssemos curados de feridas impossíveis de serem saradas pelos meios humanos, Ele ficou sozinho na cruz para que nós não precisássemos estar sozinhos em meio à dor, e para que Ele estivesse conosco todos os dias até a consumação dos séculos (Mt 28.20).

E para a pergunta que martela a mente, como os martelos que fixaram os cravos em nosso Salvador, onde estava Deus e por que não impediu que esse mal acontecesse, respondemos: Ele estava na Cruz tomando sobre si cicatrizes por nós. E ainda hoje o  Senhor dos Exércitos está conosco, como o socorro bem presente na hora da angústia, pois é Ele quem cura os de coração quebrantado e cuida de suas feridas (Sl 46 e 147).   


Esse post faz parte da nossa série de postagens de Março com o tema “Abuso”. Para ler todos os posts clique AQUI.