Feito Herói Por Um Amigo (Sobre Abraão)

Toda boa história, daquelas que prendem a nossa atenção e que estabelecem uma conexão entre nós e o personagem principal, segue uma espécie de roteiro ou etapas que é identificável em livros e obras cinematográficas, a chamada Jornada do Herói, tese desenvolvida pelo mitologista, Joseph Campbell, autor do livro O Herói das Mil Faces. Em sua observação, ele verificou que em diversas histórias o personagem principal é chamado a sair do seu mundo comum para passar por um processo de amadurecimento que o transforma em herói ao final de sua trajetória. 

Porém, dentre os mitos que a humanidade produziu e que deram origem aos deuses dos povos antigos, nenhum deles revela um heroísmo pautado pela entrega sacrificial que leva ao aperfeiçoamento. Os deuses buscavam ser imortais através da memória dos povos que celebravam seus feitos e contavam suas histórias para as próximas gerações. Para um deus ou semideus da antiguidade o objetivo era apenas ser lembrado e louvado, não importa por quais feitos, fossem eles bons ou ruins.

Esses dois elementos da jornada de um herói que nos cativa, o sacrifício e a redenção, na verdade são herdados da tradição judaico-cristã e é exatamente por isso que histórias de heróis emocionam e inspiram. Elas têm como pano de fundo os feitos redentivos de amor sacrificial inseridos por um famoso personagem da história da humanidade que dividiu eras, forneceu bases para a criação de civilizações e tornou conhecida toda uma geração de homens e mulheres que apresentavam esse mesmo padrão em suas histórias: Jesus Cristo, o Messias.

Assim, personagens que, em sua transformação, apresentam esses dois elementos e nos conectam a eles de forma que conseguimos nos projetar em sua jornada. Como em um espelho, vemos a nós mesmos passando por essa transformação, nos identificamos com seus medos, desafios, alegrias, tristezas, sacrifícios e redenção. 

No livro de Gênesis, conhecemos a história de Abel, Sete, Enoque e Noé, homens comuns que por agradarem ao Senhor por meio da fé, proclamarem o Seu Nome e andarem com Ele, tiveram seus nomes escritos no rol dos grandes heróis da fé, em Hebreus 11. Porém neste texto trataremos da jornada daquele que recebeu o título de pai da fé e é lembrado como amigo de Deus (Tg 2.21 e 23), o primeiro patriarca do povo de Israel, Abraão.

No livro Abraão – Série Heróis da Fé: Um homem obediente e destemido, de Charles R. Swindoll, compreendemos que Abraão é o arquétipo da nossa história de redenção em Cristo, um modelo do que significa receber a Graça salvadora; e é também o fundador de uma nação nova e singular por quem o mundo inteiro poderia conhecer sobre o único Deus e se voltar a Ele. O plano redentor de Deus, anunciado em Gênesis 3.15 tem seu primeiro passo concretizado no chamado de Abraão, pois ele é escolhido para, em sua descendência, trazer a geração daquele que seria o Redentor da humanidade.

Com exceção de Adão, Deus não havia feito nenhuma aliança específica com um homem, mesmo a aliança feita com Noé não tinha por objetivo salvaguardar uma descendência, mas estabelecer que a criação não sofreria outro extermínio por um dilúvio. Já a aliança com Abraão tinha o propósito de determinar uma geração que se tornaria uma nação para o Senhor. A escolha desse primeiro patriarca foi completamente incondicinal, os motivos (se existem) são conhecidos apenas no céu, mas a verdade é que Deus escolheu um homem idólatra, ignorante e supersticioso para se tornar o abençoador de muitos povos, línguas e nações sobre a Terra (Gn 12.1-3).

Segundo Swindoll, provavelmente o primeiro nome de Abraão, Abrão, foi dado em homenagem ao deus Sin ou deus Lua, que era adorado pelos povos da região de Ur (atual Iraque). Abraão já era casado com Sara, que à época se chamava Sarai, e não tinha filhos porque sua esposa era estéril. Ele estava junto de sua parentela, muito bem acomodado, até que Deus se apresenta a ele de forma tão real e indubitável que quando lhe é ordenado que saísse do meio de sua família e de seu lar rumo ao desconhecido, Abraão simplesmente se põe a caminho. 

A jornada de Abraão é também a nossa jornada de fé. Ao atender o chamado do Senhor, ele abandona seu mundo comum para nunca mais retornar e sai da zona de conforto. Da leitura de Gênesis 12.2-3, sabemos que sua recompensa por atender ao chamado de Deus lhe renderia bênçãos sem medidas tanto na esfera pessoal, nacional e mundial, então ele abandona totalmente suas crenças pagãs para crer naquele que veio até ele e se fez seu Deus. 

Ao fazer o chamado a Abraão, o Senhor torna-se para ele mais do que um mentor — Ele protege, corrige, perdoa, ensina, e conversa com Abraão. Deus estabelece uma amizade, uma relação Pai-filho com o patriarca, e a base sobre a qual esse relacionamento prosperaria era a fé. Abraão não apenas deveria acreditar na existência de Deus, mas precisaria confiar Nele independente de qualquer circunstância, pois o Senhor lhe assegurou, incondicionalmente, que estaria sempre com ele. 

Abraão passa por guerras com lutas sangrentas; enfrenta a dor da separação de Ló e de Ismael; mente duas vezes, no Egito e em Gerar, dizendo que não era casado com Sara para preservar a própria vida, colocando sua esposa em risco; cede às pressões e ansiedades da esposa para que se deitasse com a serva Hagar e assim pudesse dar uma solução própria à esterilidade de Sara e ao cumprimento da promessa de Deus sobre sua descendência. 

Apesar de todas as demonstrações de cuidado e amizade fiel do Senhor, Abraão tinha sérias dificuldades de confiar em Deus, embora pudesse conversar com seu Amigo sobre suas dúvidas, apaziguar seus temores e buscar orientação para os próximos passos, ele ainda resolvia seus dilemas à sua maneira. Aliás, é essa incredulidade que nos impede de viver nossa melhor amizade com Aquele que nos criou, mas por meio da fé ela é derrotada.   

A fé é um dom gratuito de Deus (Ef. 2.8) e que precisa ser desenvolvido. Temos uma grande tendência à autopreservação diante das adversidades e por causa do nosso padrão pecaminoso fazemos escolhas ruins para nos livrarmos das provações ao invés de entendê-las como parte do processo e um exercício para confiarmos no Senhor e vencermos a incredulidade. 

Em nenhum momento, por causa dos erros de Abraão, Deus revogou sua escolha e sua promessa, pelo contrário, como um Pai e Amigo, ensinou a ele através das consequências naturais de seus erros que trocar a lealdade do Senhor pela vaidade e orgulho de resolver as coisas por si mesmo apenas o faria errar ainda mais e colher sérias consequências de seus erros. 

Como podemos ver em Gênesis 15, do diálogo entre Deus e Abraão, é Ele quem consola e afirma a Abraão: “Não temas, Abrão! EU SOU o teu escudo; e grande será a tua recompensa!” e então ele crê no Senhor e isso lhe é creditado como justiça. Aqui o vínculo eterno entre a descendência de Abraão e o Deus Trino toma forma, a confirmação de um relacionamento completamente improvável de uma amizade fielmente unilateral. 

Para que esse vínculo ficasse na memória de seu novo amigo, Deus, através de uma prática humana, solicita a formulação de um contrato que era comum naqueles tempos por meio do sacrifício de animais, que cortados ao meio, deveriam ser dispostos lado a lado, com um espaço entre eles, para que os contratantes passassem no meio. O descumprimento do contrato acarretaria ao infrator muitas maldições. E mais uma vez, por amor ao seu novo amigo, apenas Deus passa entre as carcaças, Ele conhecia e sabia que por sua condição de pecador Abraão não conseguiria cumprir sua parte nessa amizade, mas mesmo que sejamos infiéis, Ele permanece fiel (2Tm 2.13).

Deus nunca esperou perfeição de Abraão, aliás, Ele já sabia de todas as más decisões e escolhas que seu amigo tomaria, mas Seu amor leal era suficiente para sustentar essa amizade tão especial. O Senhor decidiu ser amigo de Abraão e sempre se fez presente quando ele precisou porque este é o padrão de amizade com o Único e Verdadeiro Deus. Ele abençoou grandemente o patriarca, cumpriu suas promessas, mesmo na velhice de Abraão, lhe dá o filho que prometera, Isaque, por quem a linhagem do povo de Deus prosseguiria.  

Foi andando com Deus que Abraão recebeu dignidade, teve seu padrão moral modificado e elevado. Por meio dos atributos comunicáveis do Senhor, da convivência com Ele durante seu processo de amadurecimento, nosso herói da fé pôde aprender a cada dia quem era Este que se fez, de forma inesperada, seu Melhor e mais Precioso Amigo. Abraão finalmente tem sua fé fortalecida e sua confiança irrestrita no Senhor. 

No ápice de sua jornada do herói, ele experimenta sua maior provação e redenção. O Senhor lhe pediu em sacrifício seu único e amado filho, Isaque (Gn 22). Para qualquer leitor, mesmo aqueles que já conhecem a história bíblica, essa é uma parte da trajetória de Abraão que nos deixa aflitos. Soa quase como uma cobrança da parte de Deus por tudo o que Ele pacientemente tolerou de Seu amigo nessa jornada e a resposta natural a um pedido tão complicado como esse, ainda que feito por um grande Amigo, seria a negação absoluta, afinal, ele esperou tanto por esse filho da promessa. 

Deus era seu Amigo e demonstrou sua fidelidade para com Abraão cumprindo todas as promessas que lhe havia feito, mas será que neste momento a amizade se quebraria? O alicerce dela estaria apenas em Isaque? A fé muitas vezes envolve escolhas difíceis, toda opção por seguir a orientação de Deus implica em algum sacrifício. Então, quando as circunstâncias se voltam contra nós, devemos prosseguir confiando em Deus?

Não é à toa que Abraão faz jus ao título de pai da fé, pois foi exatamente o que ele fez — confiou em seu Melhor Amigo e atendeu prontamente ao pedido Dele. Assim como no princípio quando estava em Ur dos Caldeus e simplesmente saiu de sua parentela e se colocou a caminho de um destino desconhecido, Abraão saiu e levou Isaque para ser sacrificado sem saber qual seria o resultado de sua obediência. 

Nosso herói da fé, através de sua confiança total em nosso Deus, entregando a Ele o que lhe era mais precioso, prefigurou uma verdade muito maior: a consagração perfeita de todo um povo, gerado no Espírito, por meio do sacrifício de um futuro descendente seu ao Senhor. Pelo desfecho da história, sabemos que Isaque não precisou ser sacrificado e compreendemos, mais tarde, que a devoção de Abraão corresponde ao amor eterno de Deus, que sacrificou seu Único e amado Filho, Jesus Cristo, por amor a nós.

Este é o legado de Abraão para nós, seus descendentes espirituais: um homem que foi feito herói por um Amigo, e nos deu exemplo de fé Naquele que pode todas as coisas e nos fortalece (Fp 4.13). Deus é quem acalma nossos temores; entende nossos questionamentos e nos responde; sabe o momento certo de nos abençoar; é o único em quem podemos ter confiança irrestrita porque somente Ele é onipotente e seus planos para nós cooperam para o nosso bem, somente Ele pode destruir para construir algo novo e muito melhor.

Meu desejo é que, assim como Abraão, possamos cultivar nossa melhor amizade com Aquele que é o nosso verdadeiro Herói, nosso Pai, nosso Melhor Amigo: o Deus Trino.


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