As Doutrinas Básicas

“E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.” (Atos 2:42)

Acredito ser importante começar este artigo contando como a falta de conhecimento sobre a História da Igreja impactou negativamente minha vida cristã. Durante 20 anos, fui membro de uma comunidade religiosa sectária e, como é característico dessas denominações, fomos totalmente separados da história que nos une como povo de Deus.

Segundo os ensinamentos dessa instituição, aprendemos que existiram os tempos bíblicos do velho e novo testamentos, depois um hiato na história da igreja e, em seguida, surgiu a denominação que frequentei. Com o tempo, dúvidas tímidas começaram a surgir sobre o que a denominação me ensinava nos cultos e depois de alguns anos, por graça e misericórdia, Deus me encaminhou a conhecer verdadeiramente a sua Palavra através da boa teologia.

Porém, até que chegasse esse momento, fui apresentada e incentivada a praticar certas doutrinas, que os líderes diziam ser bíblicas, para que eu pudesse garantir e manter minha salvação; principalmente porque elas decorriam de usos e costumes praticados nos tempos dos apóstolos. O foco era nas formas da vida prática apresentadas pela Igreja primitiva e relatadas na Bíblia, desconsiderando-se os princípios que regiam essas formas, que deveriam estar alinhados com o entendimento do contexto histórico-cultural da época.

Além disso, a forte ênfase em uma revelação especial que era superior à própria Bíblia, até mesmo interpretando-a, gerou em minha vida problemas dos mais variados, desde questões de identidade até escolhas importantes que foram feitas erroneamente por causa de supostas mensagens específicas de Deus para mim. A verdade é que tudo isso teria sido evitado se eu tivesse conhecimento da História da Igreja e das doutrinas básicas do cristianismo.

Um bom estudo sobre a História da Igreja, teria me dado condições de ter entendido que eu frequentava uma denominação sectária e assim teria procurado uma denominação que fosse fiel às Escrituras. Conhecer como as doutrinas cristãs foram surgindo e se estabelecendo na Igreja nos ajuda a entender melhor nossa jornada cristã, evitando ciladas e desvios perigosos durante nossa peregrinação.       

Afinal, o que são doutrinas?

No início do livro dos Atos do Apóstolos, ao final do capítulo 2, lemos que os novos cristãos, convertidos pelo Espírito por meio da pregação de Pedro no dia de Pentecostes, logo foram instruídos em uma doutrina, a saber, a doutrina dos apóstolos. A impressão é de que os novos convertidos receberam várias regras e que agora precisavam se encaixar em uma espécie de uniformização escravizadora de pensamentos e comportamentos. 

Então, quando olhamos para a atualidade com diversas denominações, as doutrinas parecem criar cada vez mais divisões entre a Igreja, complicando nosso entendimento sobre a Bíblia e quem Deus é. Tudo isso nos leva a questionar se de fato as doutrinas são boas e necessárias, portanto, nos cumpre entender o que é uma doutrina, como ela surge e a sua finalidade.

A palavra “doutrina” vem do latim doctrina, do verbo doceo, e significa ensinar, instruir, tratando-se do conjunto de ensinamentos sobre determinado assunto que é comunicado como verdade sob a ótica de um indivíduo ou grupo. Nos termos do cristianismo, a doutrina é mais que uma mera comunicação ou ensino de uma opinião, ela é o ensino oficial da Igreja que lhe confere forma, consistência e diferenciação, isto é, que comunica sua identidade e propósito no mundo.

As doutrinas não são derivadas, em sua maioria, de órgãos oficiais constituídos na Igreja, como os concílios ocorridos nos séculos IV e V, mas foram estabelecidas como ensino oficial através de longas discussões informais que, alcançando consenso entre os membros, chegaram ao status de doutrinas oficiais, como uma consequência indispensável do Evangelho pelo qual eles viviam. É importante lembrar que a principal origem das doutrinas não é a especulação teológica, mas o culto da Igreja (a regra de culto torna-se a regra de fé).

O debate teológico, diferente da especulação, é o mecanismo pelo qual a doutrina é formada na Igreja. Alguém propõe uma compreensão individual sobre determinado ponto da fé cristã e assim outros respondem se a ideia proposta corresponde com a vida de adoração da Igreja, então, é buscado um consenso informal ou oficial que vai decidir se tal compreensão contradiz ou ignora algum ponto essencial à fé cristã.

Semelhantemente ocorre em casos mais sérios quando o objetivo é analisar se certa afirmação ou posição é a doutrina da Igreja. Se a discussão entre os membros confirma que a afirmação ou posicionamento apresentado reflete o que a Igreja tem crido, então, está confirmado; porém se do debate resultam novas ideias que ameaçam aspectos centrais da fé cristã, a decisão é de que a doutrina já seguida pela Igreja é a solução. Em casos assim, não se altera e nem se acrescenta nada, apenas assegura-se a doutrina existente.

Liberdade limitada

Segundo o historiador cristão Justo L. González, em seu livro Uma Breve História das Doutrinas Cristãs, a melhor forma de entendermos a função adequada das doutrinas é visualizando-as como as linhas que demarcam um campo de futebol. Cada jogador, dentro delas, tem liberdade para agir, mas elas são também seus limites. Tanto se forem estabelecidas mais regras quanto se não houver limites, o jogo estará destruído. Gonzalez pontua sobre a doutrina que:

“Ela não limita a liberdade dos crentes em defender opiniões diferentes, de explicar o assuntos de variadas maneiras, de enfatizar distintos elementos da fé cristã. Mas informa quais são as cercas além das quais não se está mais no campo do que a Igreja em sua totalidade considera ser a sua fé. Quando se trata da doutrina de uma denominação específica, pode servir para realçar e proteger algo que, em geral, é de grande utilidade para toda a comunidade cristã, mas que também é uma herança particular dessa denominação.”

 Esse historiador também nos lembra que as doutrinas não são imutáveis, e somente por isso é que elas possuem uma história. As doutrinas são humanas, elas derivam dos debates sobre aspectos da vida cristã, elas comunicam a respeito de Deus e sua vontade, mas não derivam diretamente dele; elas têm o seu lugar de importância porque foi através das doutrinas que a Igreja tentou deixar claro o que tem recebido de Deus, mas elas nunca serão infalíveis e imutáveis como o próprio Senhor.

Seria ótimo se as doutrinas já estivessem listadas em um capítulo inteiro do livro de Atos ou até mesmo em uma das cartas paulinas, mas essa tem sido só mais uma manifestação do nosso pecado de tentar controlar Deus. A Igreja muitas vezes confunde Deus com a doutrina e tenta contê-lo dentro de uma fórmula verbal como quando se contém a água em um jarro de vidro. Confundir as doutrinas sobre Deus com o próprio Deus é incorrer em idolatria.

Neste sentido, as doutrinas se tornam objeto de nossa fé e passam a ser o meio de salvação, logo, qualquer coisa feita em desacordo com a doutrina é um atentado à nossa salvação. Deixamos de ser filhos do amor de Deus para voltarmos a ser filhos da ira de Deus. González nos traz a seguinte reflexão: “Embora as doutrinas estejam intimamente relacionadas à fé e sejam uma expressão da fé, a salvação não se dá por meio da doutrina. As doutrinas podem muito bem evoluir, mudar e crescer. Mas o amor de Deus permanece para sempre!(destaque meu).

Se por um lado as doutrinas se desenvolvem e mudam, também temos a continuidade das doutrinas. Podemos compreender essa ideia de continuidade a partir de nós mesmos; se olharmos para quando éramos crianças, nossa passagem pela adolescência, vida adulta e depois a velhice, perceberemos que, apesar das mudanças de aparência, gostos, valores e percepções, ainda somos a mesma pessoa. Doutrinas evoluem, mas devem manter sua identidade, e o fato de evoluírem ou se modificarem não as torna falsas ou distorcidas.

Uma síntese das doutrinas: O Credo dos Apóstolos

As doutrinas, como vimos anteriormente, são discutidas organicamente na Igreja, no dia-a-dia da comunidade. Os cristãos sempre serão chamados ao debate teológico, a debruçarem-se sobre a Bíblia com o auxílio da tradição, para que os ensinos difundidos entre o Corpo sejam postos à prova com o objetivo de dissipar todo o engano e proteger as bases doutrinárias.

Todas as vezes que um assunto ganha evidência nas comunidades cristãs, levantando novos posicionamentos ou dúvidas sobre o que já está posto, então, é o momento da discussão. Para a igreja do século XXI, os grandes debates estão em torno de assuntos como identidade, relacionamento com a cultura e a salvação, especificamente o entendimento sobre a graça.

Ainda que tudo tenha se modernizado, o debate sempre será necessário para compreender melhor e para proteger as doutrinas da Igreja. Os teólogos e professores Franklin Ferreira e Alan Myatt nos ensinam em sua obra conjunta, Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual, que a Igreja, desde cedo, afirmou o conteúdo das doutrinas mais básicas e diferenciadoras da fé cristã no chamado Credo dos Apóstolos, buscando trazer uma resposta mais clara e simples para que os cristãos confessem sua fé. Assim está escrito no credo:      

 “Creio em Deus, o Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra.

E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos.

Creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica (universal e cristã), na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.”

Conforme explicam os professores, o credo afirma a triunidade de Deus, a encarnação de  Jesus Cristo, sua morte, ressurreição e ascensão, a igreja como criação do Espírito Santo, o perdão dos pecados, a ressurreição do corpo e a vida eterna. No combate aos hereges, os pais da Igreja sempre apelavam ao credo, porque as Escrituras eram o objeto da distorção; o credo, por outro lado, além de ser um resumo dos temas centrais da Bíblia, apresenta o conteúdo mais básico dos pressupostos cristãos preservados desde a época dos apóstolos, uma síntese das doutrinas básicas cristãs, cuja fonte é a Palavra de Deus e sobre as quais não há debates.

Precisamos ter em mente que estamos em uma grande corrida da fé onde todo o conhecimento da Igreja, inclusive as doutrinas, é como um bastão passado de corredor para corredor. A fé que defendemos e amamos é fruto do trabalho e vigilância de uma multidão que veio antes de nós, irmãos e irmãs que em todas as eras guardaram o bom depósito da fé e o transmitiram até que chegasse a nós.

Assim como a Igreja é o nosso Corpo, as doutrinas passam a ser nossas como um produto que deriva dele. Devemos estudar, criticar, aceitar e também procurar reformar as doutrinas, lembrando sempre que a Igreja reformada deve seguir se reformando. Se queremos ser cada vez mais parecidos com Cristo, então a transformação, por meio da reforma, é o meio de graça concedido pelo Deus Trino a nós para que possamos abandonar a velha natureza caída em Adão e adquirirmos uma natureza nova e superior. 


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