A necessidade de esquecer-se de si (Sobre nosso ego)

É desafiador escrever sobre causas que afetam diretamente áreas da vida que precisam de mudança e que são mais evidentes e exploradas na caminhada terrena pelas circunstâncias. Antes de escrever, desafiador foi ler e encarar as verdades bíblicas a respeito do ego humano. Talvez confortar o coração na certeza de que Deus transforma a realidade de nosso olhar, mente e coração deveria ser a chave para um assunto tão delicado como ego. Diferentemente do que eu pensava e, talvez, diferente do que você espera para este artigo, verdades expostas pelo apóstolo Paulo serão descritas aqui, e nelas a verdade de que o problema é: o ego tem significância em nossa vida, e nele encontra-se motivos para divisão, desentendimentos, falta de paz e inimizades. Esse artigo é baseado na obra de Timothy Keller, “Ego Transformado”.

O cenário de 1 Coríntios mostra uma realidade de indivíduos que, baseados num egocentrismo desenfreado, estavam dando excessiva importância ou significância para seu papel social, idolatrando líderes a seu favor, dividindo-se por vaidades, gabando-se por seus dons e, no conceito que nos toca, exigindo de Paulo mais do que ele mesmo se exigia. É revelado no começo do livro bíblico, em relação a alguns líderes da igreja de Corinto, a intensa busca e admiração por uma sabedoria elevada, sabedoria essa que tinha como origem o egocentrismo, e como objetivo a conquista da admiração. Paulo, nos capítulos iniciais, começa a desconstruir a ideia dessa ‘sabedoria humana’, tão ansiada pelos coríntios, colocando-a como insuficiente e fraca em relação à sabedoria que vem de Deus.

Mediante os escritos de Provérbios e Jó, mencionados pelo apóstolo, a verdadeira sabedoria divina nos fará parecermos loucos para os sábios desse mundo. Porém, o erro dos coríntios não era somente buscar sabedoria na fonte errada, mas buscar sabedoria com a motivação errada, e quando se fala de motivação errada, fica mais fácil encontrar ligações entre eles e nós. Como pecadores, temos a impressão de que nossos tolos planos de obter conhecimento acima dos outros tornam nossos papéis mais significativos na igreja, e esse era o pensamento de alguns em Corinto, esse é o pensamento de alguns hoje, na igreja e fora dela. Por exemplo: Quem nunca caiu no erro de por um segundo se achar superior a alguém só porque estudou mais? Quem nunca se achou melhor do que os outros só por ter participado de uma viagem missionária? Por se importar mais com a igreja, com o Evangelho e etc.? A sabedoria de Deus também educa quanto à humildade, e isso Paulo quis trabalhar nessa epístola.

A superioridade da sabedoria divina é reveladora, porque ela faz com que os falsos sábios experimentem de sua estupidez e egoísmo, porque a superioridade do caráter do Senhor faz da busca por reconhecimento uma atitude de total tolice. A rivalidade entre os coríntios era a prova de que precisavam ser tratados (alguns até como carnais), eles haviam se tornado tão fúteis e insensatos que se dividiram e eram leais a líderes que não possuíam os requisitos bíblicos de liderança, mas tão somente alimentavam a sede do povo por erudição e boa retórica, ignorando, porém, o tratamento à igreja; ignorando o fato da necessidade do combate ao pecado iminente. Absorveram errado o espírito instrumental dos servos de Deus, idolatrando-os por sua fama. Buscavam o status se dividindo em fãs de Apolo, e outros de Paulo, mas ninguém buscava a unidade em humildade.

Os coríntios estavam cercados pela necessidade de contemplação humana, cercados pelas correntes do reconhecimento a todo custo, necessitados de aprovação e visibilidade, o ‘eu’ gritava em seus corpos, uma necessidade desenfreada.

Preocupado, o apóstolo Paulo constata o cenário. Paulo já havia vivido a transformação causada pela verdadeira sabedoria, havia se transformado em um homem humilde; por isso ele aproveita das críticas e julgamentos que estava recebendo por parte da igreja, para ensinar a partir do seu próprio exemplo. Paulo estava sendo julgado, porém, a postura dele é marcante, o apóstolo dá uma aula de como ter um ego moldado pelas Escrituras: “Embora em nada minha consciência me acuse, nem por isso justifico a mim mesmo; o Senhor é quem me julga. Portanto, não julguem nada antes da hora devida; esperem até que o Senhor venha. Ele trará à luz o que está oculto nas trevas e manifestará as intenções dos corações. Nessa ocasião, cada um receberá de Deus a sua aprovação” (I Co. 4:4-5). As críticas formuladas contra ele não o balançaram, diferente de mim, Paulo havia calado sua auto-estima, seu ego foi esquecido; ou numa linguagem de Tim Keller, Paulo operou em si o “auto-esquecimento” com base na aprovação de Deus.

Na atual sociedade, por muitas vezes, o cenário é parecido com o que Paulo vivenciou, nós precisamos concordar. No cenário coletivo e no individual, eu e você encontramos características do que os coríntios estavam vivenciando, e bem sei que a mesma necessidade que eles tinham, eu também tenho. Hoje, não tão especificamente a minha busca e a sua seja por sabedoria para dominação intencionalmente, como possivelmente ocorria com os líderes de Corinto, mas, por vezes, a busca pode ser por autorreconhecimento, por auto-valorização, excesso de autoestima ou falta dela, porém, a justificativa da busca é a mesma dos irmãos em Corinto. Buscamos uma visão satisfatória do ‘eu’, a necessidade de olhar para si e encontrar satisfação, uma autoestima equilibrada, orgulho saciado.

A psicologia atual afirma que o motivo para vícios, atitudes de desespero e raiva podem ser causadas pela falta de autoestima. A saída então? Anime as pessoas, vamos inchar sua estima, assim consegue-se ajudá-las a se desenvolver, um orgulho cheio tornará a vida mais simples e segura. Sendo assim, não diferentemente do drama atual, os atuantes de Corinto estavam na rota da busca da satisfação e graduação de sua estima, assim como eu me encontro em alguns momentos, se não, em todo tempo.

O capítulo 4 mostra o apóstolo explicando algo especial sobre o ego humano, a temática e palavras usadas nessa passagem são específicas, as palavras usadas para ‘orgulho’ são repetidas apenas em outras partes de 1 Coríntios e uma vez em Colossenses 1. O sentido aqui denotado é de um ego super inflado, inchado além do tamanho normal, a palavra remete a imagem dolorosa de um órgão humano distendido, com uma grande quantidade de ar, algo bombeado, prestes a explodir. Essa não é a imagem do ego inflado, essa é a imagem do ego em seu estado natural. Ele pede atenção, ele dói, ele não se cala, essa é a imagem natural do que eu e você carregamos.

Keller tenta explicar essa passagem no livro com quatro características sobre a condição natural do ego humano. Ele é vazio, dolorido, atarefado e frágil. Citarei indiretamente agora algumas das explicações do autor:

O ego é vazio, por mais que as palavras do apóstolo revelem a imagem de algo inflado, o interior é oco, vazio. Existe no coração humano a busca por identidade, essa identidade busca ser formada em torno ou por meio de algo que não seja Deus. A busca mais intrínseca é por um sentido, às vezes encaramos a vida de frente e parece que a corrida é para que o ‘eu’ tenha sentido e significado, a busca é para o preenchimento desse vazio. O maior problema é que o vazio encontrado em nós é originalmente o lugar de Deus no centro do nosso coração, quando colocamos ou buscamos algo que não seja Ele para essa ocupação, a mais pura verdade é que vai sobrar muito espaço.

Dolorido, é essa a condição do ego humano. Ele é diferente de nosso corpo, que reage com dores quando há algum problema. O ego dói o tempo inteiro. Há necessidade de atenção, todos os dias, todos os momentos. Ele exige que nossa atenção, nossos olhos e nossos ouvidos sejam voltados a nossa aparência e ao modo que somos tratadas. Nessa parte da leitura do livro, passei a perceber que durante o dia, existem momentos (quase que constantes) em que me sinto tola ou ignorada por alguém, ou até sentimentos mais ‘doloridos’. Keller explica a inconstância, existe um problema com a minha identidade, existe um problema com a percepção do meu eu.

O ego é atarefado, vive ocupado. A incansável tarefa é preencher o vazio, dessa forma, ou ele se compara ou ele se vangloria. Na comparação, inclusive, descrita por Paulo (quando ele alerta aos irmãos de que não devem se encher de orgulho em favor do outro) a necessidade é ser mais, e se encontramos alguém que é mais do que somos, toda a busca não teve significado, toda a conquista não foi o bastante. Quando a tentativa é sobressair, o resultado é a vanglória, queremos ser mais, para preencher a impotência e o vazio.

Ele é também dolorido. Algo inflado e eco, não há solidez por dentro da capa de dor, há um vazio. Alguém com o ego super inflado corre o risco de ser desinflado, alguém com ego desinflado, um dia já esteve inflado. Em ambos os casos há dor, em ambos os casos existe um ego fragilizado.

Esse conjunto é a realidade do estado do ‘eu’ humano. Essa realidade havia sido transformada pelo poder do Evangelho na vida de Paulo, e o mesmo poder que atuava nele, atua em mim e em você. Paulo não busca a afirmação de ser alguém, ele não se abate com o julgamento e críticas alheias, o auto-esquecimento é tão efetivo em Paulo, que nem ele próprio julga-se alguém com necessidades a serem sanadas. A identidade de Paulo não deve nada a ninguém, nem a ele próprio. Atualmente ouvimos conselhos rasos a respeito do que devemos a nós mesmas; dizem, “estabeleça seus critérios e viva de acordo com eles”. Paulo é diferente, vai em direção oposta a esses conselhos, o Paulo transformado pelo Evangelho diz o contrário dessas afirmações modernas. Nem mesmo Paulo se avaliava com critérios específicos, nem mesmo Paulo criava opiniões a seu respeito, nem mesmo Paulo achava que precisava de atenção e importância a crises emocionais e intrínsecas relacionadas ao âmbito social, e quanto às crises internas ele sabia bem como administrar e tratar.

Porquanto, ainda que esteja consciente de que nada há contra mim, nem por isso me justifico, pois quem julga é o Senhor. (1 Corintios 4:4, King James)

Paulo tinha sua mente tranquila em relação às acusações, mas sabia que não era inocente. Paulo sabia que nada do que ele fosse seria por mérito, nada do que ele fizesse seria bom, e ainda que essas características pudessem ser notadas ou ditas a ele, ele não queria cair nessa armadilha de afirmações de padrões alheios. A afirmação abaixo mostra o senso de identidade do apóstolo, ele segue por uma rota desconhecida por nós.

Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior. (1 Timóteo 1:15)

Paulo reconhece-se como pecador, mas não atrela suas atitudes e ações ao que ele é, conhece seus pecados e conhece suas vitórias, mas isso não tem valor maior do que deveria ter a ponto de mexer com a espiritualidade ou orgulho do apóstolo. Paulo procurava não dar chance a comentários e pensamentos a seu respeito, ainda que esses viessem dele mesmo.

Paulo deve a Cristo a transformação de seu interior, os pecados cometidos não o impedem de manter viva a missão dada por Deus a ele, as realizações não o inflamam, mas ao mesmo tempo não o deixam tranquilo e relaxado. Paulo não se condenava por ser um pecador, tão pouco se julgava digno de alguma coisa. A transformação de Paulo deve-se ao poder de Deus em sua vida, essa afirmação é necessária e viva na vida do apóstolo.

O poder do Evangelho que traz humildade, traz também a liberdade que vem do auto-esquecimento, o ego torna-se satisfeito e não mais necessitado de atenção e importância. Desse modo, nenhuma crítica lhe tira o sono, nenhum elogio o deixa inflado. Paulo chegou à humildade numa escala ainda não alcançada por mim, ele não se importava consigo, passou a pensar menos em si e em suas causas, Paulo esqueceu-se de suas crises e necessidades. Paulo sabia que não era julgado por ninguém, nem por ele mesmo, o julgo vinha do Senhor, e nesse julgamento o próprio Juiz decidiu a sentença, Paulo sabia que se fosse para ser julgado todos os dias, que fosse feito diante do tribunal desse Juiz.

O poder do Evangelho traz humildade e a liberdade que vem do auto-esquecimento. O ego torna-se satisfeito e não mais necessitado de atenção e importância. Nenhuma crítica lhe tira o sono, nenhum elogio o deixa inflado. Click To Tweet

Depois da leitura do livro e das passagens bíblicas, o senso da falta de humildade vem, me vi na necessidade de liberdade do ‘eu’. Meus pensamentos são cercados da necessidade de aceitação, meus pensamentos reforçam que eu preciso conquistar mais alguma coisa, que preciso do reconhecimento em algumas áreas. Eu preciso esquecer de mim. Quero admirar a vitória do outro com entusiasmo, quero desejar verdadeiramente o sucesso alheio, quero servir verdadeiramente sem antes pensar do que terei que me desdobrar, mas encarar a necessidade do outro como uma prioridade de serviço e amor. Quero me alegrar com o que não gira em torno de mim. Meu trabalho não é meu, minha casa não gira em torno de mim, minha igreja não é necessitada de mim, minha vida amorosa não tem a mim como centro. Quero deixar de pensar em mim como se eu fosse mais do que sou, porque na maioria das vezes é isso que penso, ou em alguns momentos, também erro em pensar em mim como se eu fosse menos do que sou. E como viver essa liberdade?

Compreendendo o mesmo que Paulo. Ele afirma que quem o julga é o Senhor. A opinião de Deus o interessa. O julgamento do Senhor tira Paulo do tribunal e traz Jesus Cristo para ser julgado em seu lugar. É essa a grande diferença, é essa a transformação vivida pelo apóstolo, a alegria da salvação, a humildade alcançada por Paulo é a alegria e gratidão de ter sido salvo pelo bom Pastor. No Cristianismo Deus nos imputa as ações perfeitas de Cristo juntamente com a identidade de filhos, a salvação traz as características necessárias para vivenciar a verdadeira humildade, uma vida dedicada a Deus em todos os sentidos, não há espaço para o reinado do ‘eu’ nas relações, Cristo se faz Senhor das nossas vidas, o reinado dEle é necessário para alcançar a humildade. A justificação juntamente com o processo de santificação opera em nós.

Você, crente no Senhor Jesus Cristo, tem a possibilidade de viver esse convite do auto-esquecimento, e a maior alegria é essa – você e eu não somos mais julgados. Por quê? Porque Jesus Cristo foi julgado em nosso lugar. Eu e você podemos ouvir do Pai exatamente o que disse ao Filho: “Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo” (Marcos 1:11).

Querida, eu e você fomos alcançadas pelo mesmo Evangelho que transformou o apóstolo Paulo, o Evangelho de transformação que atua diariamente em nossas vidas. O Evangelho de Jesus Cristo nos edifica, nos liberta e nos cura das amarras que criamos. Oro para que a liberdade do ‘eu’ ocorra cada dia mais forte na minha e na sua vida. Nossas relações precisam dessa mansidão, nossas mentes precisam libertar-se do desejo de agradar e satisfazer o ego, nossa atenção e dedicação precisam servir ao Rei que é digno. Que Ele reine sobre nossa mente e coração, que Ele faça de nossas vidas morada de sua presença a ponto do ‘eu’ tornar-se cada vez menor, que o reinado aconteça e que a gente sirva. Dedicadas em amor, apaixonadas pelo Amado de nossas almas.

Esse é um artigo, baseado na leitura de 1 Coríntios 3 e do livro “Ego Transformado”, de Timothy Keller, publicado pela editora Vida Nova.