Os Apóstolos: Simão Zelote

Quando lemos sobre a escolha dos 12 apóstolos descrita em Mateus 10, percebemos que Jesus, aparentemente, estava longe de ser estratégico quanto às profissões que até então os discípulos tinham. Pontuo aqui a profissão porque, não importa a época, o trabalho que alguém desempenha na sociedade faz parte de sua identidade e, muitas vezes, até se confunde com quem ela é, e a pessoa passa a ser definida apenas pelo que faz. No entanto, essa é, certamente, uma ótica puramente humana.

Deus, por outro lado, nos vê de uma forma tão íntima que só Ele pode nos dizer quem somos e, ao chamar aqueles que lançariam os pilares da fé para a edificação da Igreja, curiosamente escolheu alguns pescadores, um coletor de impostos e, inacreditavelmente, um revolucionário: um homem marcado pela violência, intransigência e brutalidade. Este era Simão, o Zelote, que, em algumas traduções, é chamado de o nacionalista ou o cananeu (do grego kananaios, não de Caná da Galiléia ou de regiões que professavam uma fé pagã, mas do aramaico Qannâ que significa zelo excessivo, ciúmes). Tal homem foi escolhido para representar o Reino de Deus e, pela mensagem do Evangelho, reconciliar e trazer paz entre Deus e os homens. Pois é, esse é o nosso Pai com suas escolhas maravilhosas e inexplicáveis (cf. 1Co 1:27-29).

Ao ler esse trecho do artigo, você ou sorriu, ou ficou pensativo, ou, quem sabe, indignado. A verdade é que Deus vê o coração e nunca seremos capazes de perscrutar o que se passava na mente dele quando amou Simão, desde a fundação do mundo, e o designou para ser um daqueles que ajudariam na formação da Igreja, enquanto apóstolo. 

Zelo bruto

“Naqueles dias, Jesus se retirou para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus. E, quando amanheceu, chamou a si os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro, e André, seu irmão; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que se tornou traidor”

(Lucas 6:12-16)

Tudo o que sabemos sobre este apóstolo é o que é apresentado nesse trecho de Lucas e nos textos correspondentes nos demais evangelhos sinóticos (Mt 10.4 e Mc 3.18), além do relato de Atos 1.13 em que Lucas nos conta que Simão estava junto aos outros apóstolos no momento da ascensão de Jesus após a crucificação, e também nos momentos de oração em conjunto.

Tudo mais que podemos saber sobre Simão, o Zelote, deriva de fontes históricas comuns ou da tradição da Igreja. Todavia, o termo “zelote” pode nos dar uma ideia de sua antiga identidade e, assim, nos fornecer elementos de como foi essa aproximação entre Jesus e Simão.

Desde a invasão babilônica, como um juízo de Deus sobre Israel, mesmo depois do retorno dos israelitas a Jerusalém com a consequente reconstrução dos muros e do templo, nada foi como era antes. Eles poderiam estar em sua terra natal, mas estariam sempre debaixo de algum jugo. Duzentos anos antes da vinda de Cristo, Judas Macabeu liderou uma das maiores revoltas judaicas contra o tirano Antíoco Epifânio IV e, em seguida, temos a dominação romana que trouxe consequentes guerras de resistência culminando na mais violenta e catastrófica delas no ano 70 d.C. com a destruição quase que total do templo de Jerusalém, destruição essa profetizada pelo próprio Jesus.

É nesse cenário de resistência ferrenha que surgem os zelotes, uma espécie de facção formada por judeus que nunca aceitaram a dominação romana e faziam uso da violência para se contrapor a ela. Em Atos 5.37, podemos ver o sábio Gamaliel citando um dos líderes mais famosos dos zelotes, entre eles, Judas, o Galileu ou Judas de Gamala, que era tido como um pseudomessias o qual de fato consolidou o movimento dos zelotes em 6 d.C. e a quem o historiador judeu Flávio Josefo também cita em seus escritos (A Guerra dos judeus, 2, VIII, e Antiguidades judaicas, XVIII).

Dentre os zelotes também havia uma subdivisão da resistência conhecida como sicários; tratava-se de uma ala mais radical cujo nome derivava de um punhal curvo chamado em latim de sicae ou sica e que, segundo o autor Aramis C. DeBarros, em sua obra Doze Homens, Uma Missão, eles “escondiam na túnica e com o qual, de modo furtivo, faziam tombar os romanos e, particularmente, os colaboracionistas judeus, durante as aglomerações nos dias de peregrinação a Jerusalém”. 

Todos aguardavam fervorosamente a vinda do Messias prometido que traria a libertação dos israelitas e que inauguraria tempos de paz e prosperidade; aquele que esmagaria os inimigos, vingando todo o sofrimento de seu povo, mas que, acima de tudo, seria um servo fiel do Senhor, um rei da raiz de Davi que reconheceria apenas o Deus de Israel como o Deus verdadeiro e que nunca adoraria a deuses estranhos.

Simão, o Zelote, em uma linguagem mais atual das ideologias, era um nacionalista, alguém que levava muito a sério as demandas da comunidade judaica. Sobre o tema, David T. Koyzis em seu livro Visões e Ilusões Políticas,  nos diz que “o nacionalismo reconhece que as pessoas buscam identidade em comunidades que exigem sua lealdade e impõe-lhes diversos níveis de sacrifício pessoal pelo bem-estar coletivo. Embora, essas comunidades tenham muito a oferecer aos seus membros – definindo-lhes um senso de companheirismo e proporcionando-lhes também algumas vantagens econômicas tangíveis –, esses benefícios não existiam para satisfazer os desejos dos membros enquanto indivíduos.”

Em outras palavras, o zelo embrutecido no coração de Simão fazia com que ele fosse mais um diante de tantos que, com sua ideologia para “salvar” Israel, estavam sendo um instrumento de “justiça” nas mãos de Deus. Ele era sua própria causa e a causa de seus compatriotas; mas, quem poderia enxergar o ser humano por trás de toda aquela casca de revolução, violência e amargura? Simão era um homem que precisava de um coração novo e um propósito redimido.   

Zelo lapidado

Não há certezas quanto a como aconteceu o encontro de Simão com Cristo, mas podemos pensar em algumas possibilidades.

A série The Chosen, com certeza, trouxe licenças históricas que arrebataram e emocionaram a todos nós que acompanhamos essa perspectiva de um Jesus que, sendo Deus, foi inteiramente humano também, assim como as Escrituras testificam dele. E na missão de juntar seus 12 futuros apóstolos, a série nos traz que Simão, o Zelote, poderia ser irmão do paralítico que há 38 anos estava nessa condição, esperando um milagre: o agitar das águas, por um anjo, no tanque de Betesda, onde poderia ser mergulhado por alguém que tivesse compaixão em levá-lo e assim ser curado de sua paralisia.

Para um homem focado na missão de erradicar os romanos e seus colaboradores, como também na de libertar Israel do domínio opressor, somente algo extraordinário poderia chamar a atenção de um revolucionário como Simão. Certamente ele ouviu falar de Jesus e seus feitos ou até mesmo presenciou um deles e isso mudou tudo.

Ainda conforme o autor, Aramis C. DeBarros, já citado anteriormente, alguns historiadores da tradição da Igreja, como Nicéforo e Jerônimo, contam que Simão poderia ter sido um morador de um pequeno vilarejo que ficava nos arredores de onde aconteceu o primeiro milagre de Jesus, nas bodas de Caná da Galileia, e provavelmente estando naquela festa, ele teria testificado do milagre da transformação da água em vinho, crido em Cristo e se somado àqueles que passaram a seguir o Mestre. 

O texto apócrifo do Evangelho dos Ebionitas, também conhecido como O Evangelho dos doze apóstolos (séc. II), nos traz uma outra possibilidade de encontro entre Jesus e Simão: a de que seu chamado foi feito junto ao de Pedro, André, Tiago e João (Mt 4.18-22) no mar da Galiléia e assim ele poderia ser também um dos pescadores que ouvia as palavras de Jesus e que contemplou seus feitos.

Independente da forma como tenha acontecido esse chamado e a união de Simão, o Zelote, aos 12 apóstolos, a verdade é que Cristo foi até ele, o enxergou e foi buscá-lo para andar ao seu lado e aprender dele que é manso e humilde de coração. Gosto muito do trecho da série The Chosen, no episódio 5 da 2ª Temporada, em que Jesus, com a sica de Simão nas mãos, a lança no rio. A faca que era instrumento da “justiça” do até então Zelote não seria útil na missão pelo Rei dos reis e suas Boas Novas. Então, Simão pergunta: “Sem a minha sica, por que precisaria de alguém como eu?”  e Jesus responde: “Eu já tenho tudo o que preciso, mas eu queria você!” Ali estava o homem a quem Simão poderia seguir, a quem ele chamaria de Messias. 

Penso em Simão, o Zelote, sendo destacado daquela multidão disforme de seus companheiros nacionalistas. Ele finalmente é visto em sua individualidade. Muito mais do que sua luta pelo fim da miséria de seu povo, Deus vê sua derrota diante da miséria de seu coração por não aguentar mais ver o sofrimento dos judeus e ser incapaz de salvá-los com sua ideologia. 

Acima de tudo, Simão precisava ser salvo e, então, ele vai até o Mestre com seu sicário, completamente inútil diante daquele por quem tanto esperou, o Messias, e o clamor que carregava consigo de alguém que já estava tão cansado de tanta violência pode ter sido:  “Salva-me, Senhor e salva nosso povo!” Ele entende que daquele momento em diante seu zelo embrutecido agora deveria ser lapidado pelo verdadeiro ourives. 

Zelo na missão

“[Simão Zelote] pregou a Cristo ao longo da Mauritânia e da África Menor. Foi, por fim, crucificado, dilacerado e enterrado na Britânia.” (Doroteu, bispo de Tiro — 303 d.C.)

Movido agora por sua nova missão, identificado como filho amado de Deus, Simão não deixou de ser um patriota, mas direcionou todo o seu patriotismo a um País infinitamente superior: a Nova Jerusalém que um dia descerá dos Céus. Onde entre os cidadãos poderia estar, inclusive, os mesmos romanos opressores, que alcançados pelo poder do Evangelho, seriam agora chamados de seus irmãos. 

Simão agora lutava, não mais com sua sica, mas no poder do Espírito Santo que habitava seu corpo, pela maior causa já levantada entre a humanidade: a redenção definitiva, das almas que Deus ama, por meio do sangue precioso de Jesus derramado na cruz.

Podemos cogitar várias possibilidades sobre como foi a vida do apóstolo Simão, o Zelote, mas a verdade é que, mesmo entre seus apóstolos, Deus cumpriu sua promessa, em uma aplicação alegórica, de cessar inimizades, porfias e irreconciliações como podemos ver na profecia de Isaías 11.6:

“Naquele dia, o lobo viverá com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito. O bezerro estará seguro perto do leão, e uma criança os guiará.”

Ao colocar um revolucionário odiador de romanos junto a um judeu coletor de impostos que trabalhava pela prosperidade de Roma, Jesus nos mostra claramente que não importa nossas origens, profissões ou atos mais perversos, em sua mesa todas as almas arrependidas e redimidas serão bem-vindas e terão um trabalho a desempenhar em seu Reino, pois sua nova identidade em Cristo é o que marca seu novo nascimento para uma nova vida.


Bibliografia consultada

DEBARROS, Aramis C. Doze homens, uma missão: a vida dos líderes que caminhavam com Jesus, o homem mais amado da história. 1 Ed. São Paulo: Hagnos, 2006.

KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise crítica cristã das ideologias contemporâneas. 2 ed. ampliada e atualizada. São Paulo: Vida Nova, 2021. Tradução: Lucas G. Freire, Leandro Bachega.


Esse post faz parte da nossa série de postagens com o tema “Os Apóstolos”. Para ler todos os posts clique AQUI.