O que o Cristianismo Não É: Tedioso
Recentemente, li uma notícia do mundo das finanças que me deixou bastante intrigada. O Banco Central recolheu quase 500 mil notas falsas no ano de 2019, o que representava cerca de R$ 32 milhões em “dinheiro”. Este tipo de ação ocorre todos os anos, e o Banco Central alega reter e tirar de circulação centenas de milhares de cédulas falsificadas. Fico me questionando quantas delas passaram por meus bolsos sem que eu percebesse que não eram verdadeiras. Felizmente, muitas pessoas são capazes de reconhecer cédulas suspeitas, justamente porque elas possuem elementos de segurança como relevo e cores especiais colocados no papel moeda.
Pensando nisso, comecei a traçar um paralelo com o cristianismo. Quantas inverdades têm se disseminado por aí, colocando em cheque a nossa fé, os nossos valores e a própria Palavra de Deus? Em alguns casos, a mentira se propagou de tal forma que, antes de pregar o Evangelho, é preciso desmistificar o que ele não é. E Ele não é, hoje ou desde sua fundação, tedioso.
Que haja um verdadeiro despertar sobre o que é ser igreja de Cristo e você se sinta encorajada a batalhar diligentemente “pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”. (Judas 3)
A lente embaçada da religiosidade
“Sua religião é muito sem graça”, foi o que ouvi em diversas ocasiões na adolescência e início da vida adulta. Era assim que o cristinianismo soava para aquelas pessoas (ou que eu poderia dar a entender que era, com minha imaturidade na fé). De fato, muitos que ainda não creram e foram libertos por Cristo seguem enxergando o cristianismo como tedioso, um mero conjunto de regras e costumes, uma vida monótona, previsível, alheia ao mundo real e aos prazeres que, supostamente, tornam a vida mais feliz e animada.
Pelas lentes de quem ainda não teve um encontro verdadeiro e transformador com Cristo, decisões como seguir as regras dos meus pais e não cabular aula para ir ao bar de sexta-feira eram algo inconcebível, sinônimo de uma vida chata e cheia de regras a cumprir. Minhas colegas da faculdade não entendiam o quanto valia a pena seguir a Cristo.
Creio que muitos enxergam o cristianismo como tedioso porque os próprios cristãos se mostram entediados e entediantes ao seguir regras e costumes sem sequer questionar porque o fazem. É muito fácil cair na rotina de culto, escola bíblica dominical, louvores, ofertório, cânticos e socialização pós culto, esquecendo o propósito de tudo o que fazemos.
Sem perceber, podemos nos tornar personagens como os do jogo de videogame Stardew Valley, um RPG sem fim da vida no campo, onde seu trabalho diário será pegar ferramentas, recursos naturais do terreno e algumas moedas para sobreviver dia após dia e aumentar suas posses em uma fazenda fictícia. Fiquei bastante intrigada quando conheci o jogo, pois há um detalhe bastante específico: o personagem segue uma rotina de acordar, dar comida para o cachorro, regar a horta, cortar as árvores, conversar com os vizinhos e negociar alguns recursos em troca de mais moedas. Todo dia a mesma coisa, com algumas pequenas variações. Cada ação consome um pouco de energia e, portanto, é preciso parar para descansar quando o tanque de energia esvazia (ainda que o relógio marque apenas quatro da tarde). De fato, é um jogo relaxante. A previsibilidade das ações, a música que fica tocando ao fundo e o gráfico simples são um afago na alma dos trabalhadores que passaram o dia inteiro em reuniões e precisam de um alívio para o que restou do cérebro.
Embora seja um jogo gostoso e leve, quero fazer um paralelo com nossas vidas espirituais: será que estamos vivendo um cristianismo tedioso e pacato, em que nos contentamos com o básico de uma rotina de domingo? Será que estamos perdendo o senso de propósito? Quando foi que perdemos o Reino de vista?
Quando leio os relatos da vida ministerial de Cristo, vejo qualquer coisa, menos tédio e monotonia. Lembremos do relato em Marcos 1: Jesus e seus discípulos foram à sinagoga, onde Ele expulsou um demônio que O reconheceu como o Cristo, e logo depois foram à casa de Simão, cuja sogra estava doente, e Jesus a curou. No entardecer, toda a cidade estava reunida à porta da casa e o Senhor curou muitos doentes de diversos tipos de enfermidades, além de expulsar mais demônios. Que maratona! Não sei você, mas se esta fosse minha rotina de domingo, eu acordaria na segunda-feira de “ressaca social” (se é que isso existe). Mas, nosso Cristo continuou; creio que Elisabeth Elliot diria que Cristo sempre estava fazendo a próxima coisa. Ele não cansava de dar mais e mais de Si, de discipular seus seguidores, de enfrentar os fariseus, de quebrar os falsos preceitos sobre como cumprir a lei. Cristo não cansava de amar, e quando parecia que seu tanque estava vazio e seco, o Pai sempre providenciava um deserto, um monte e uma madrugada silenciosa para que Ele pudesse se retirar para orar e reabastecer. Se nada em Sua vida foi tedioso, só consigo encontrar uma justificativa: seu coração estava tomado pelos planos do Reino e nada neste mundo era mais atraente do que seguir o plano.
O quanto da vida do próprio Cristo encaixa em nossas realidades rotineiras e litúrgicas?
A lente embaçada da grandiosidade
Outra forma de enxergar o cristianismo como tedioso é viver desejando grandes experiências espirituais. Pessoalmente, tenho uma dificuldade tremenda em seguir uma rotina. Minha mente criativa gosta de fazer as coisas cada dia de um jeito diferente, e eu segui à caça de novas experiências por meus 30 e poucos anos, até minha filha nascer e eu precisar recalcular a rota. Talvez você seja do tipo que precisa de rotina para que a vida faça sentido. Entretanto, não podemos negar que nosso coração quebrado vive ansiando por uma vida um pouco mais emocionante do que a que levamos. Em seu livro “Liturgia do Ordinário”, a autora Tish H. Warren diz que temos a tendência natural de querer uma vida cristã sem as partes chatas. É a mais crua e pura verdade.
Ao chegarmos no culto, dificilmente desejamos mais uma exposição bíblica sobre o Salmo 23. Queremos novidades, um novo ponto de vista sobre os milagres de Cristo, uma nova aplicação para a parábola da ovelha perdida, uma música diferente ou uma visita de algum estrangeiro que traga informações revolucionárias sobre as igrejas do mundo afora.
Durante nossa semana, é muito fácil ter a sensação de frieza espiritual se não sentirmos algo diferente durante nossas orações, tivermos insights geniais durante nossos devocionais ou vivenciarmos algo grandioso em nossas idas ao mercado. Quero que entenda que não é errado desejar experiências espirituais no dia a dia, mas qual é o parâmetro que temos usado para medir a grandiosidade de nossa piedade? Precisamos mesmo que um trovão rasgue o céu enquanto estivermos orando e clamando pela salvação de nossos familiares? Será que a presença de Deus só é sentida quando percebemos que Ele nos livrou de uma batida de carro no trânsito? Talvez o tédio que sentimos seja oriundo de nossas lentes sujas pelo desejo de grandiosidade.
Tish Warren diz, novamente em “Liturgia do Ordinário”, que não há atividade pequena demais ou rotineira demais para refletir a glória e dignidade de Deus. “Se é para passar toda a minha vida sendo transformada pelas boas novas de Jesus, eu preciso aprender como verdades grandiosas e arrebatadoras — doutrina, teologia, eclesiologia, cristologia — entram na textura de um dia comum. Como eu passo esse dia ordinário em Cristo é como eu vou passar a minha vida cristã.”
As partes [supostamente] entediantes de nossos dias importam para Deus, pois são o campo de treinamento do que cremos e adoramos. Assim sendo, nosso cristianismo deixará de ser tedioso quando a tarefa de limpar o chão de casa se tornar em uma forma de adorar ao Deus que limpa nosso coração dos pecados com Seu bendito sangue. Combatemos a frieza espiritual quando lavamos a louça e enxergamos nisso um enorme potencial de refletir a ação de Deus no mundo, ao vir até nós para solucionar o caos em que nos metemos. Minha amiga Isabella Oliveira diz que nenhuma tarefa doméstica é entediante quando a entrego ao Senhor que amarrou um avental em sua cintura e serviu. “Deveríamos nós fugir do ofício que mais nos torna semelhante ao Senhor?”, ela exorta. Quando limparmos nossas lentes, perceberemos que cristianismo não é viver em busca do extraordinário, mas aprender a ver os toques da graça no ordinário que está diante de nós.
Consequentemente, esse novo modus operandi afetará a forma como o resto das pessoas percebem o agir de Deus. Acordar cedo, tomar um café correndo e pegar um ônibus cheio para chegar no trabalho passa a ter um significado diferente quando você entende que um dos métodos de ensino de Deus é a rotina, o ordinário. Você acordou cedo porque compreende que serve a um Deus de ordem e precisa cumprir com suas obrigações; você tomou um café (e talvez tenha comido até um pedaço de bolo) porque o Senhor enviou o pão de cada dia mais uma vez, e assim por diante. Em Provérbios encontramos o segredo para viver o extraordinário de Deus em nossos dias ordinários: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie no seu próprio entendimento. Reconheça o Senhor em todos os seus caminhos, e ele endireitará as suas veredas” (Provérbios 3:5-6, grifo meu).
Andar com Cristo é viver entre milagres tremendos e caminhadas longas em solo árido, grandes sermões e ensinamentos implícitos na forma de tratar o nosso próximo, ascensão aos céus e uma conversa com amigos em volta de uma fogueira. Não há nada de tedioso em ser cristão. Até mesmo as regras são boas, quando entendemos seus propósitos e como elas refletem a própria graça de Deus em nos livrar de perigos. Que sua caminhada siga mais leve e proposital ao se deparar com a multiforme graça derramada em dias rotineiros e espetaculares. Ambos têm seu lugar no plano de Deus, tenha certeza.
Esse post faz parte da nossa série de postagens de Maio com o tema “O que o Cristianismo Não É”. Para ler todos os posts clique AQUI.