A posição da igreja em relação ao divórcio em casos de abuso

Começo esse texto dizendo que preferiria não escrevê-lo. É o tipo de assunto sobre o qual eu gostaria que nada precisasse ser dito. É muito triste e pesado precisar falar sobre algo que machuca e afeta tão negativamente a coroa da criação de Deus. A mulher, assim como o homem, foi criada à imagem e semelhança de seu Criador para o louvor da Sua glória, para ser auxiliadora, protegida e amada. As mulheres não foram feitas para serem escravas, maltratadas, abusadas e violentadas. Embora isso seja resultado do pecado no mundo, que revela a podridão e maldade do coração humano sem Deus, Ele não quer que as coisas sejam e permaneçam assim.

O abuso sexual no casamento ocorre quando uma das partes força para que a relação sexual aconteça, sem o consentimento da outra, por meio de violência psicológica e/ou física. Outros abusos também podem ocorrer dentro do casamento, como o abuso físico, emocional, ou patrimonial.

Não existem estatísticas oficiais, mas estima-se que cerca de 40% das denúncias de violência contra a mulher, feitas em órgãos especializados, envolvem mulheres cristãs. Acredita-se que esse número seja maior, uma vez que muitas não denunciam, principalmente por medo e vergonha.

Além disso, não existe muita literatura acerca do que trataremos aqui: o posicionamento da igreja em relação ao divórcio em caso de abuso doméstico. É um terreno pouco explorado, dados a complexidade do assunto e as áreas delicadas da fé cristã que envolve, há pontos de vista distintos no meio cristão.  Portanto, esse texto argumentará a favor de uma perspectiva amparada pelas Escrituras e não substitui o aconselhamento pessoal e pastoral.

Considerando a delicadeza do tema e crentes que o Senhor dá diretrizes acerca de todas as questões que nos rodeiam, voltemo-nos à Sua Palavra, que é atemporal, e vejamos o que ela tem a nos instruir.

O que a Bíblia diz sobre divórcio

O sexo é uma bênção quando desfrutado no contexto do matrimônio, mostra o amor, a generosidade e a felicidade da doação mútua. Pode frutificar através dos filhos, constituindo-se o meio pelo qual o Senhor faz Seu povo crescer e se multiplicar. Ele faz com que homem e mulher se tornem uma só carne, oficializando uma relação que aponta para a união entre Cristo e a Igreja. Por conta disso, a natureza do casamento é inviolável.

O texto do Antigo Testamento mais utilizado acerca do divórcio é Deuteronômio 24.1-4, em que o marido ao repudiar sua esposa deveria entregar-lhe uma carta de divórcio, ficando os dois livres para um novo casamento. Caso no futuro ele desejasse unir-se novamente a ela, não teria esse direito. Tratava-se, portanto, de uma medida protetiva para a mulher.

Em Mateus 19.3-9, Jesus é questionado pelos judeus se um homem pode repudiar sua esposa por qualquer motivo e citam o texto da Lei de Moisés na tentativa de minar a popularidade do Mestre. Ele volta a Gênesis e explica que o casamento foi criado com o objetivo de que não se desfizesse; o divórcio não faz parte do plano original de Deus. Moisés não estava dando os motivos pelos quais o casal deveria se divorciar, mas o que fazer caso o divórcio acontecesse. Essa prescrição foi dada por causa da dureza do coração dos homens, como um modo de amenizar os danos causados pelo pecado. Ensina ainda que o adultério (infidelidade conjugal) justifica a separação, embora a tentativa de reconciliação deva ser priorizada. Caso a dureza de coração leve uma das partes a não querer mudar, o divórcio é permitido.

O assunto é abordado novamente em 1 Coríntios 7.10-16, cujo contexto é se o convertido a Cristo deveria abandonar o cônjuge pagão. O apóstolo Paulo diz que o casal não deveria se separar. Porém, caso o não crente quisesse se divorciar e abandonasse o relacionamento – no sentido de ir embora – e não fosse possível restaurar, a união estaria desfeita.

Assim sendo, a Bíblia permite o divórcio em dois casos: adultério e abandono irreversível, e isso devido à dureza do coração humano causada pelo pecado.

Divórcio em caso de abuso

O padrão do casamento é refletir o relacionamento entre Cristo e a Igreja e Efésios 5.22-33 retrata muito bem isso. Jesus ama sua noiva a ponto de dar a vida em seu favor, protegê-la do mal e preocupar-se com sua santificação e crescimento. O marido deve imitá-Lo no tratamento de sua esposa, devendo amá-la como ao próprio corpo. Por outro lado, a esposa deve ser submissa ao marido, como a Igreja se submete ao seu Amado Redentor.

Quando no casamento acontece o abuso e um dos cônjuges sofre violência, o abusador desobedece a Deus, e mancha a imagem de Cristo nele. Muitas mulheres com as vidas em perigo permanecem em relacionamentos desse tipo por medo, por saberem que Deus não se agrada do divórcio e que o casamento foi feito para durar para sempre. Outras, ainda, não encontram apoio em suas igrejas.

É preciso muita sabedoria para lidar com casos assim. Antes de tudo, o ideal é o acompanhamento pastoral, a disciplina e a tentativa de perdão e reconciliação. Cristo oferece esperança tanto para o abusador, quanto para o abusado. Em relação ao abuso sexual, no livro Fazendo novas todas as coisas, o autor David Powlison diz que “o Senhor tem uma visão altamente positiva do sexo. E ele tem uma visão extremamente negativa da imoralidade. E possui profundo interesse tanto pelos que são consensualmente imorais quanto pelas vítimas dos criminalmente imorais. Ele tem muito mais misericórdia do que conseguimos imaginar, Jesus vem para cada um e para todos”.

O divórcio é doloroso em qualquer circunstância, uma vez que vai contra a ordem divina estabelecida. Caso a restauração não seja possível, o divórcio é aceito, sendo enquadrado no caso de 1 Coríntios 7, visto que houve abandono. Abandono do casamento, da moralidade, da obediência aos preceitos bíblicos, do amor a Deus e ao próximo resultando em ameaça contra a vida. Não necessariamente, todos os que frequentam a igreja são cristãos de fato, o próprio Senhor Jesus nos alertou através da parábola do joio e do trigo de que nem todo o que está no meio de Seu povo é de fato filho de Deus.      

A postura do Corpo de Cristo

A igreja funciona de forma orgânica, como um corpo, em que um depende do outro e “de maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele” (1 Co. 12.26a). Em uma situação como a que analisamos aqui, o que se espera é acolhimento. É preciso fornecer um ambiente seguro em que a mulher tenha confiança de se abrir, ao mesmo tempo em que se dê o suporte necessário à denúncia, ao processo de separação e à cura das feridas no corpo e na alma.

Nossas irmãs precisam de coragem para denunciar. John Piper diz que “há momentos em que o exercício da misericórdia para com um, demanda justiça em relação ao outro. Esse é frequentemente o caso do abuso criminoso” (tradução livre minha*). Nosso Pai instituiu autoridades às quais devemos nos submeter e obedecer quando não forem contrárias aos Seus preceitos. As leis civis afirmam que abuso é crime, que o agressor deve ser punido e que as vítimas têm direito à proteção. Gênesis 6 narra que o Senhor trouxe a destruição por meio do dilúvio em resposta à corrupção e violência do gênero humano. O Salmo 11.5 diz que Ele abomina ao que ama a violência. Aquele que abusa está quebrando tanto as leis de Deus, quanto as dos homens, devendo, por isso, também prestar contas às autoridades e arcar com as consequências.

As vítimas também precisam de suporte durante o processo de divórcio. Ainda traumatizadas, necessitarão de amparo para seguirem firmes, não se deixando levar pelo medo, pela raiva e pelo turbilhão de sentimentos que surgem dentro delas.  Não se trata apenas de um documento que encerra o contrato do casamento, mas de uma história, que é um misto de momentos bons com planos e sonhos destruídos, que será deixada para trás. Além disso, surgirão questionamentos acerca da bondade e do poder de Deus. Cristãos maduros, sábios, pacientes e amorosos são essenciais nesse momento.

As vítimas ainda necessitam encontrar restauração. O abuso nunca é culpa da vítima. Não é porque ela foi “insuficiente” no casamento, porque desagradou o marido, ou seja qual for a “justificativa” encontrada, que “mereceu” ser violentada. Cristo não nos trata assim, muito pelo contrário. A culpa é da dureza do coração humano, dos desejos pecaminosos desenfreados contra os quais temos que lutar nesse mundo caído. Nos Evangelhos, vemos Jesus recebendo os que sofriam e eram desprezados, oferecendo amparo e nova vida. É preciso fazer jus ao nome de “cristão” e, de fato, imitar o Mestre. A igreja é um dos instrumentos que Ele usa para concretizar Sua ação. Se a igreja não acolhe a vítima e caminha junto com ela, falhou no seu papel de cuidar do Corpo de Cristo.

Gostaria de finalizar lembrando às irmãs que passaram e às que ainda passam por abuso de que há um Noivo que sabe como tratar Sua Noiva. Ele a está preparando e purificando, através de muitas situações difíceis, para estarem juntos para sempre em um lugar em que não haverá mais dor, choro ou tristeza. Na cruz Jesus carregou toda vergonha e humilhação para que fôssemos redimidas. Os sentimentos ruins que te atormentam não te definem, querida irmã. Cristo te define e tem forjado a imagem dEle em você. Ele sabe o que é ser menosprezado, tratado com violência, abandonado e tantas outras coisas que eu sequer posso imaginar, e, por isso, Ele pode curar suas feridas visíveis e invisíveis, e restaurar sua identidade. NEle há amor, graça e consolo infinitos para você seguir em frente até encontrá-Lo face a face.


Esse post faz parte da nossa série de postagens de Março com o tema “Abuso”. Para ler todos os posts clique AQUI.