A cura para o daltonismo espiritual (ou Falando sobre discernimento)

Um óculos de sol tem feito muita gente se emocionar nos últimos meses. É possível assistir a diversos vídeos nas redes sociais em que homens de meia idade são levados às lágrimas pelo simples ato de colocar o acessório e olharem ao redor. O motivo da comoção é que essas pessoas nunca viram o mundo como a maioria de nós: cheio de cores e tons. Eles sofrem de daltonismo, uma condição que os torna incapazes de ver todas ou algumas cores. Os óculos, chamados EnChroma, são uma invenção que corrige essa perturbação para pessoas com o tipo mais comum, que afeta as cores vermelha e verde.

Esses vídeos são surpreendentes e emocionantes, e uma excelente oportunidade de olhar pela janela e agradecer por viver em um mundo com cores…. e por poder enxergá-las. Mas eles também nos levam a pensar no oposto: viver sem discernir os tons, sem saber se o semáforo está verde ou vermelho. Sem contemplar a majestade de uma floresta e seus milhares de verdes, ou então pensar em como deve ser o fogo pelos olhos de alguém que não enxerga o vermelho.

De forma semelhante, podemos comparar a nossa conversão com a experiência de ver as cores pela primeira vez. O Espírito Santo nos mostra realidades antes totalmente desconhecidas por nós e nos faz enxergar o mundo de maneira totalmente diferente. Esse processo de amadurecimento acontece a partir do discernimento, a capacidade de distinguir o bem do mal, o certo do errado, o apropriado do impróprio. A vida cristã é um constante “jogar de luz” ou correção de cores, à maneira do EnChroma, sobre todas as áreas, pensamentos, ações, sentimentos e verdades de nossa existência. Cristo declara sua soberania sobre todos os centímetros do universo, inclusive os mais milimétricos do nosso cotidiano. É importante considerar essa verdade, seja qual for o estágio de sua maturidade espiritual e especialmente em uma época em que temos tanta facilidade e diversidade de fontes e mensagens com o rótulo cristão.

Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo. 2 Coríntios 10:5

Infelizmente, vemos crentes com anos de igreja sendo levados de um lado para o outro em modas de doutrinas e interpretações. Ou, então, percebemos que esses cristãos têm a Bíblia como livro de cabeceira, mas não livro do coração. Pior ainda, há aqueles que mal sabem dar a razão da sua fé, apesar de professá-la há décadas. Desconhecem os princípios mais básicos da fé cristã. Sobre esses, o autor de Hebreus foi extremamente claro:

De fato, embora a esta altura já devessem ser mestres, vocês precisam de alguém que lhes ensine novamente os princípios elementares da palavra de Deus. Estão precisando de leite, e não de alimento sólido! Quem se alimenta de leite ainda é criança, e não tem experiência no ensino da justiça. Mas o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptos para discernir tanto o bem quanto o mal. Hebreus 5:12-14 (grifo meu)

Outro cenário, especialmente comum em nossos dias pós-Google, é o daqueles que mal terminaram de clamar por salvação e já estão distribuindo argumentos em discussões na internet e rótulos de fé em termos técnicos como em uma série de clubinhos de interpretação bíblica. E a deles é sempre a melhor, mesmo que mudem de ideia a cada nova pesquisa ou fonte bibliográfica. Não se preocupam com uma vida de oração, não são membros sujeitos à igreja local, mas sabem marcar meio mundo com seu carimbo especial de “heresia porque eu discordo”. Eles não têm compromisso com ninguém, suas palavras (talvez por serem em grande parte pronunciadas no mundo virtual) são tão baratas quanto o senso de maturidade. Mas Cristo é muito claro sobre isso:

Mas eu lhes digo que, no dia do juízo, os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. Mateus 12:36

Discutir teologia, sem dúvidas, não é palavra inútil. Mas discutir teologia sem discernimento pode lhe custar muito mais caro do que levar um unfollow ou bloqueio em rede social.

Veja bem, saber discernir não é uma questão de santidade, apenas. De saber o que é certo ou errado. É compreender as coisas para além de suas definições imediatas e enxergá-las no contexto de redenção revelado a nós em Cristo e sua palavra.

O que isso quer dizer?

Ao subir a montanha com João, Pedro e Tiago, Jesus transfigurou-se na presença deles; seu rosto brilhou e suas roupas ficaram brancas como a luz. Os discípulos viram essa cena e logo em seguida apareceram o patriarca Moisés e o profeta Elias. Ao vê-los conversando com Cristo, Pedro diz: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias”. (Mateus 17:4)

Imagine só, é quase cômico: Jesus resplandece em glória e logo em seguida duas das principais figuras históricas da fé judaica, um representante da Lei e outro dos profetas, surgem e conversam com Cristo e tudo o que Pedro pode dizer naquela hora foi: vamos construir barracas para vocês! Com certeza ele não era mal intencionado, mas sem dúvidas não soube discernir o que estava acontecendo diante de seus olhos, muito menos a dimensão, o significado de tudo aquilo.

O quanto Pedro perdeu por não ter ficado quieto… ou por ter discernido a coisa certa a falar.

A questão é que o discernimento não é uma capacidade adquirida automaticamente na conversão ou assimilada por osmose e convivência entre crentes, mesmo na presença física de Cristo, como no caso de Pedro. Muito pelo contrário, o discernimento é algo que desenvolvemos e exercitamos, como um músculo. Em Filipenses, Paulo escreve:

Esta é a minha oração: que o amor de vocês aumente cada vez mais em conhecimento e em toda a percepção, para discernirem o que é melhor, a fim de serem puros e irrepreensíveis até o dia de Cristo, cheios do fruto da justiça, fruto que vem por meio de Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus.  (1:9-11)

Esses três versículos colocam diante de nós a fonte, a forma e o propósito do discernimento para qualquer filho de Deus. Em primeiro lugar, vemos que o discernimento vem do amor. Não é uma habilidade que pode estar separada de nossa afeição por Cristo, muito pelo contrário. Esse amor aumenta na medida de nosso conhecimento e percepção, ou seja, quanto mais amamos a Cristo, mais comunhão temos com ele, mais buscamos por sua presença e pelas palavras reveladas nas escrituras. Se o conhecimento está ligado ao amor por Jesus, então entendemos que sem o Messias não há discernimento. Ele é o início, meio e fim de toda percepção. Não há como discernir nada sem o conhecimento de Cristo Jesus, ele é a rocha angular, a base de tudo. Ah, se os cristãos se preocupassem em primeiro lugar com isso, quanto mais discernimento veríamos em meio à igreja e na vida daqueles que testemunham da fé!

A cura para o daltonismo espiritual, então, é colocarmos os óculos de discernimento, como lemos:

-provém do amor?
-é puro?
-é irrepreensível?
-é o melhor de acordo com o conhecimento e percepção revelados em Cristo e nas suas escrituras?
-produz frutos de justiça?
-trás glória e louvor ao Deus trino?

Sim, um artigo teológico pode estar cheio de versículos bíblicos e ainda assim não produzir justiça por dar louvor ao Deus trino. Uma pregação pode dizer muitas verdades sobre as escrituras, a história da igreja ou a lei de Deus, mas se não revelar a Cristo como produzirá frutos de justiça? Um conselho pode parecer interessante e até puro, mas como será irrepreensível e trará glória a Deus se não for de acordo com a sua palavra?

E ainda mais: como pode alguém se orgulhar por discernir todos esses requisitos expostos por Paulo se, antes de tudo, o conhecimento e percepção provêm do amor? O discernimento produz justiça, não ibope. De fato, o discernimento não suporta dividir a glória que só pertence a Deus. É exatamente por isso que, não importa quão famoso, estudado ou bem intencionado seja o teólogo, pastor ou autor de livro, suas palavras sempre serão submetidas ao crivo do discernimento da Bíblia. Assim como os cristãos de Beréia, todos nós somos chamadas a examinar o que nós é transmitido.

Como lemos em Filipenses, o discernimento tem duas pernas: o conhecimento e a percepção. Conhecimento sem percepção é viver como os mestres da lei nos tempos de Jesus. Eles sabiam o Pentateuco de cor, mas não eram capazes de perceber o que estava à sua frente:

A que posso comparar esta geração? (…) Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: ‘Ele tem demônio’.Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: ‘Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e “pecadores” ’. Mas a sabedoria é comprovada pelas obras que a acompanham. Mateus 11:16-19

Já a percepção sem o conhecimento transforma as pessoas em fantoches de suas próprias emoções ou das ideias dos outros:

O propósito é que não sejamos mais como crianças, levados de um lado para outro pelas ondas, nem jogados para cá e para lá por todo vento de doutrina e pela astúcia e esperteza de homens que induzem ao erro. Efésios 4:14

Será que temos sido zelosas em discernir? Podemos dizer que cumprimos a ordem de Paulo em Tessalonicenses “Examinai tudo. Retende o bem”? Nosso amor tem aumentado em conhecimento e percepção? É triste constatar que, muitas vezes, os cristãos idolatram a teologia na boca dos outros e ela ainda nem ao menos foi gravada em seus próprios corações. Ou então, eles não se preocupam em examinar se os ensinamentos são realmente bíblicos porque confiam de olhos fechados em quem está falando. É sobre esse tipo de discípulo que Paulo escreve a Timóteo em sua segunda carta, e aqui ele fala especialmente sobre mulheres que ouvem falsos mestres e:

Estão sempre aprendendo, mas não conseguem nunca chegar ao conhecimento da verdade. 2 Timóteo 3:7

Que Deus nos livre de sermos essas pessoas. Que ao invés de “mulherzinhas” como são chamadas as crentes do versículo acima, possamos reter “com fé e amor em Cristo Jesus, o modelo de sã doutrina” que nos foi entesourado nas Sagradas Escrituras, o nosso “bom depósito”.

Quanto ao bom depósito, guarde-o por meio do Espírito Santo que habita em nós. 2 Timóteo 1:14

Guardemos o bom depósito. Ele nos custou o Filho de Deus. Guardemos o bom depósito. Ele é a razão da nossa esperança. Guardemos o bom depósito. Ele é a chave da Eternidade ao lado do Criador. Guardemos o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós.

É triste constatar que, muitas vezes, os cristãos idolatram a teologia na boca dos outros e ela ainda nem ao menos foi gravada em seus próprios corações. Click To Tweet

Guardemos o bom depósito. Ele nos faz enxergar o mundo em todas as suas cores.


Cecilia J. D. Reggiani é jornalista e tradutora, casada com Guilherme e membro da Igreja Batista Reformada de São Paulo. É idealizadora da publicação interdenominacional Benditas.blog, uma plataforma dedicada a divulgar a produção teológica de mulheres cristãs na língua portuguesa.