Catarina von Bora, a Primeira-Dama da Reforma

Nossa querida Tairine aceitou o desafio de escrever sobre uma das figuras mais conhecidas da Reforma Protestante – Catarina von Bora, esposa de Martinho Lutero. Aproveitem a detalhada descrição da vida dela, há muito a ser aprendido.

Obrigada, Tai!


Neste mês de comemoração, seria indispensável trazer à nossa memória a figura emblemática de Catarina von Bora, a esposa do reformador Lutero. Usamos essa nomenclatura como se fosse necessário descrever Catarina dessa forma. Veremos a forte e ousada história de Catarina, e como ainda é surpreendente e relevante sua história para nós, e como sua personalidade se mantém única e moderna ainda hoje.

A história de Catarina se inicia na pequena aldeia de Lippendorf. Catarina nasceu no dia 29 de janeiro de 1499, filha de uma família nobre empobrecida. Perdeu sua mãe quando ainda era criança, e por esse motivo aos 6 anos de idade foi levada pelo pai ao convento beneditino em Landsberg para que assim recebesse uma boa educação. Em 1509 foi transferida para o convento Trono de Maria, em Nimbschen. Foi neste convento que Catarina recebeu diversas oportunidades de aprender latim, ler e escrever, fazer trabalhos manuais, observar o trabalho rural, ser disciplinada e fazer uso de ervas medicinais. Mais tarde, o reformador Martinho Lutero, inclusive, externou uma opinião bem marcante sobre o envio de moças ao convento, eis sua fala: 

‘’É muito vergonhoso que crianças, particularmente mulheres indefesas e jovens meninas, sejam empurradas para os conventos. Tenho vergonha de pais implacáveis que tratam seus filhos com tanta crueldade.’’

A fuga do convento

Havia uma longa tradição de enviar meninas muito novas aos conventos, por diversos fatores, econômicos principalmente. A vida nesses conventos não era fácil, tampouco confortável. Os escritos da reforma que estava acontecendo fora do convento foram camuflados e entraram nos conventos. Catarina, influenciada pela verdade do evangelho, demonstra já neste momento seu caráter destemido e determinado – ela chegou a suplicar à madre superiora que lhe permitisse partir, se esforçou para entrar em contato com sua família e com o próprio Lutero, porém, alcançou apenas penitências e açoites quando trancada no convento. O cenário não era favorável, mas as circunstâncias não foram desanimadoras.

Para Catarina e suas companheiras, o único meio de transporte disponível para fuga em busca da liberdade era uma carruagem puxada por cavalos, com a possibilidade de se esconder entre os barris de arenque… e assim aconteceu. Não há relatos ou indícios que Catarina tenha iniciado o plano ou instigado a conspiração, porém essa é uma história realmente maravilhosa. Doze freiras, comprometidas com Jesus, virgens, permaneceram de boca fechada, planejaram a fuga, cumpriram o plano e nenhuma voltou atrás, nenhuma desistiu.

Essa carruagem carregava Magdalene, Else, Lanita, as duas Aves, as duas Margaretes, Fronika, Catarina, e outras três (que não têm seus nomes relatados). Junto às moças, aquela velha carruagem carregava sentimentos de vergonha por estarem fazendo aquilo, e ao mesmo tempo, o alívio de quem aspira por um porto seguro, o alívio da liberdade. Pararam em Torgau, e logo depois o destino era Wittenberg. Um estudante da cidade relatou algo sobre a chegada dessas freiras em Wittenberg:

‘‘Uma carroça cheia de virgens vestais acabou de chegar na cidade, todas mais interessadas no casamento do que na própria vida. Que Deus lhes conceda maridos para que não aconteça coisa pior’’.

Esse evento trouxe mudanças aos conventos – ao longo dos anos o número de freiras nos conventos ia diminuindo. Era o êxodo dos conventos. Talvez Lutero, com suas declarações de que os conventos eram ‘piores do que prostíbulos’, ajudou na extinção desses locais.

Após sua fuga, enquanto estava morando em Wittenberg, na casa do escrivão, Catarina viu seu caminho se obscurecendo. Sabe-se de um romance que não deu certo com Jerônimo Baumgärtner, esse é o nome do homem que trocou palavras e sussurros com Catarina a respeito de um futuro juntos. Os pais desse rapaz muito se preocuparam com a escolha do filho, não queriam que houvesse envolvimento. Jerônimo não respondeu às cartas de Catarina, respeitou a vontade de seus pais. Ainda na insistência, Catarina pediu ajuda de Martinho Lutero, que era professor de Jerônimo, mestre que ele muito admirava, para que entrasse em contato. A ajuda de Lutero se tratou de frases como essa:

Se você quer sua Catarina von Bora, é melhor fazer alguma coisa rapidamente, antes que ela seja dada a outra pessoa que a queira.’’

Não adiantou.

O inesperado casamento com Lutero

Catarina foi morar a pouca distância de Wittenberg, na casa de um homem que em breve se tornaria um artista famoso, Lucas Cranach, o Velho. Ele era nobre e próspero, casado com Barbara Brengbier, mãe de cinco filhos. Catarina cuidava da casa e das crianças. Lutero era padrinho de algumas das crianças. O reformador, com a ajuda de outros, conseguiu encontrar maridos para as freiras fugitivas, a todas que desejavam se casar – todas, menos Catarina. Lutero começou a fazer tentativas, uma delas foi o pastor Casper Glatz. Nessa ocasião, Catarina estava com vinte e poucos anos de idade e repleta de alternativas de pretendentes dadas por Lutero, porém, não poupava o reformador, deixando clara a sua reprovação; foi o caso de Casper, que sendo muito mais velho, não lhe serviria; porque não lhe serviria ser empurrada aos braços de alguém por quem não tinha afeto e sentimentos, não parecia ser uma opção para ela.

Uma opção pensável, creio que por sua admiração, era Nicolau Amsdorf, pois ela mesma havia declarado isso a Lutero. Além dessa opção, nossa querida Catarina apostou em mais um candidato, o próprio Lutero. Por que não considerá-lo? Ela ousou e funcionou. Lutero havia atestado na carta a Jerônimo que Catarina talvez tivesse pretendentes, ele sabia que não verdade.

Sendo assim, a mulher enérgica, forte, competente e “bom partido” que Catarina apresentava ser, fez com que o revolucionário Lutero fosse à casa de Cranach para providenciar o esperado casamento, realizando o mais rápido possível. Aqui temos um ponto, Catarina não era tão ingênua para não perceber que essa decisão havia sido tomada não por amor apaixonado, e talvez a aceitação dela também não fosse. O homem influente foi capturado para ser seu marido, ela o daria sobriedade e auxílio, esses eram bons motivos para um casamento acontecer naquele momento na vida de Lutero.

O casamento aconteceu, as notícias se espalharam. Catarina agora precisava mais uma vez se contextualizar a uma nova realidade de vida, agora moraria ao lado de Lutero no Mosteiro Negro, o antigo convento de monges de Wittenberg, em 1525, no momento da triste guerra dos camponeses. A partir desse acontecimento a história de Martinho Lutero e Catarina von Bora passa a ser escrita numa realidade diferente, o matrimônio. O ex-monge e a ex-freira, casados.

Lutero escreveu, ‘’De repente enquanto eu estava ocupado com outros pensamentos distantes, o Senhor me mergulhou dentro do casamento.’’

O casamento escandaloso foi muito mal visto pela igreja católica, redundando em muitos insultos a Lutero. Ambos entraram nesse casamento sem borboletas no estômago, era um casamento de companheirismo e conveniência para os dois. Diversas são as menções de Lutero sobre sua falta de paixão, porém sempre a estimando muito.

Pela misericórdia o matrimônio foi sendo transformado, as declarações de Lutero depois de alguns anos casado demonstram essa transformação.

Ele disse: ‘’A vida de casado é um paraíso, mesmo onde tudo o mais esteja em falta.’’

Em pouco tempo de casados, o primeiro filho foi concebido, e logo após mais 5 filhos, totalizando 6. Na figura do marido encontramos a firmeza do homem no século XVI, onde o mundo era dominado por masculinidade, mas na figura de Lutero um outro fator é encontrado, ele era um pai maravilhoso. Sua dedicação aos pequenos era diária, ele não dividia apenas os cuidados com as crianças com Catarina, mas ajudava também nos afazeres domésticos. Catarina sabia quem havia escolhido, um marido que a servia. Em uma ocasião, ela esboçou o desejo em comer laranjas, numa época onde não havia em Wittenberg. Martinho as encomendou nas proximidades para lhe satisfazer.

Família, hospitalidade e compaixão

Para Lutero a família era um grande fator na Reforma, se não o centro. Outros reformadores trataram do assunto, mas Lutero enfatizou como ninguém a posição do casamento e da família. O ponto focal da criação e das Escrituras direciona questões à família. Até hoje é incomparável sua grandeza aos valores familiares, e claramente Catarina está ao seu lado nesta posição. Sem ela, os ensinos e os escritos de Lutero não seriam nada além de mapas e esqueletos. Diante da figura de Catarina, sabemos que dificilmente outra mulher teria mudado e moldado os hábitos dele.

Lutero e Catarina compartilhavam de um grande coração, ambos não limitavam seu amor à família, eram generosos com amigos e com estranhos. Lutero era extremamente preocupado com a camada mais pobre da sociedade. Há um relato sobre o auxílio do casal à uma mulher.

Lutero disse, ‘’Eu a recebi em minha própria casa com meus próprios filhos. Ela teve amantes e engravidou e pediu a uma das minhas empregadas domésticas para pular sobre seu corpo e matar o bebê por nascer. Ela escapou graças à compaixão da minha Catarina.’’

Ela também tinha disposição em ajudar os doentes, era competente nesta tarefa. Seu paciente mais constante e difícil era o próprio marido. Além do auxílio ao estado de saúde, Catarina se preocupava com o estado mental e sentimental do próximo. Quem não lembra da maestria de Catarina ao se vestir de preto em posição de luto? Ela se vestiu dessa forma e apareceu ao marido, que estava deprimido, alegando que Deus estava morto. Lutero, surpreso com tamanha barbaridade que Catarina estava dizendo, reagiu, dizendo que Deus era eterno e que Ele vive para sempre. Dessa forma ela reanimou o melancólico Martinho, que estava desanimado e triste, deixando de confiar no Senhor. Após essa encenação Lutero resgatou sua confiança no Deus vivo.

Catarina, administradora competente

Catarina era incansável, sabemos que sua rotina não era fácil. Cuidava do lar (lugar que recepcionava diversas pessoas, familiares, amigos, alunos, pobres e etc), administrava também a parte rural de sua plantação e gado (historiadores retratam que havia habilidade em seu serviço, e que ela mesmo cuidava do trato dos animais e de sua alimentação), era uma das mais renomadas cervejeiras de Wittenberg (Lutero em suas viagens tinha saudades não só da esposa, mas de suas bebidas – em um relato ele descreve: “Ontem, tive de tomar uma bebida ruim, e não gosto do que não é bom. Fico pensando no bom vinho e na boa cerveja que tenho em casa, bem como na bela esposa.”), cuidava de seus hóspedes, cuidava dos doentes (sua generosidade com certeza era enxergada por quem esteve doente e foi auxiliado por sua pessoa, ela era mestra de ervas e massagens, muitos a consideravam melhor do que muitos médicos da época), cuidava também de seu marido e de seus filhos.

Para termos uma noção da rotina de Catarina apenas no que diz respeito ao seu lar, a edificação do mosteiro tinha três pisos, com quarenta quartos apenas no térreo. Pense que a responsabilidade das refeições, limpeza, cuidado com os livros e lavagem de roupas estava sob Catarina, todos os dias. Claro que ela tinha seus empregados e auxiliares, mas não era só disso que ela cuidava.

Ser chamada como ‘’estrela da manhã de Wittenberg’’ era bem apropriado. Ela era uma ótima administradora, diversos escritos dão à Catarina os créditos pela expansão econômica do reformador. Visionária, pensou em expansão de espaço e em garantir propriedades para sua família. Ela teve sucesso em suas atividades.

Relatos mostram sua maestria também na cozinha (que mulher é essa?), Lutero escreve: “Porém, Cristo vive, portanto regozijemo-nos mesmo em meio à fúria dos demônios e dos homens, desfrutando as boas coisas da vida, até que eles cheguem a um fim miserável, especialmente se vocês nos honrarem com sua preciosa companhia, com seus cativos, que sob influência da nossa cozinheira-mestra, ficarão retidos no cativeiro das panelas. Minha Catarina e todos os demais saúdam a vocês, respeitosamente.”

Maternidade

Sua vida materna era o emprego fixo e eterno. Os registros mostram que não houveram períodos de folga. Ela deu à luz a seis bebês nos anos de 1526,1527,1529,1531,1533 e 1534 (três meninas e três meninos). Ela sempre esteve ocupada.

Os momentos de felicidade eram muitos, imaginar uma casa com crianças e agitação é no mínimo animador aos que admiram a posição de pai e mãe, mas houveram momentos de tristeza na história desse casal. Quando o primeiro filho, Hans, estava com quase um ano e meio nasceu Elizabeth, e dez meses depois do nascimento houve um momento tenebroso no Mosteiro Negro, a morte da pequena Elizabeth aparentemente veio de forma súbita. Imagino a mente de Catarina, onde houve conforto, qual foi o momento em que o sentimento de perda se apaziguou? Pensar na força que é necessária a pais num momento como esse é desafiador.

Dois meses depois Catarina estava grávida, outra menina, Madalena. Embora a fama de boa esposa esteja sempre ao lado de Catarina, suas habilidades como mãe não podem ser esquecidas, ela era impressionante (há relatos de que alguns sobrinhos de uma irmã falecida de Lutero já moravam com eles).

Os momentos de dor profunda de Catarina e Lutero ainda não haviam terminado, Madalena no dia 20 de setembro de 1542 vem a falecer aos treze anos de idade. Para sua filha, segundo relatos, Lutero teria dito:

’Minha filha mais amada, minha doce e rica ‘Lenchen’, sei que tu ficarias alegremente com o teu pai aqui, só que existe um pai melhor esperando por ti no céu. Ficarias igualmente feliz em ir e estar com ele, não é assim?’’

Em uma carta para um amigo, Martinho abre seu coração, retratando seu sofrimento e de Catarina. Ele dizia que precisavam se alegrar com o fato de a menina ter sido liberta dos poderes da carne, do mundo e do diabo, mas que não conseguiam agir assim diante do sofrimento íntimo e dos choros.

A vida cristã de Catarina quase não foi relatada. Teologicamente, não houve interesse de Catarina em ser refinada nessa questão, isso não significa que ela era tola, como por vezes Lutero dá a entender. Apesar de toda a posição sarcástica de Lutero em relação às mulheres, e seus deboches, quando ele precisava de alguém que pudesse conversar e depositar sua confiança, alguém equilibrado e sensato, ele quebrava seus paradigmas e padrões e corria aos braços de Catarina. Não há para nós escritos ou indicativos de que Catarina tinha uma espiritualidade otimista. Catarina precisava de Jesus Cristo, desesperadamente, assim como nós.

Preocupações de Catarina

Diante de tantas qualidades, precisamos pensar nas possíveis falhas de Catarina, sua preocupação e ansiedade deviam ser constantes. Uma mulher preocupada, sem descanso e paz não é equilibrado. Pensar que era mais nova e que de alguma forma, precisava se preparar para a viuvez e sustento de seus filhos, poderia ser um dos fatores de sua preocupação, a falta de organização de Lutero na vida econômica também a devia deixar de cabelos em pé. Falta de confiança no Senhor resultam nessas quedas.

Houve o tempo em que a preocupação tinha motivos maiores, Lutero sabia que estava na hora de partir, sabia que precisava criar alternativas para deixar uma vida de sustento garantida a Catarina e aos filhos. Ela também sabia disso, há tempos as preocupações com sua saúde eram presentes. Ele queria uma transição de esposa para viúva de forma tranquila.

Lutero estava em viagem, Catarina deveria estar inquieta. Quatro dias antes de sua morte, Catarina recebe uma carta de esperança “Nós podemos vir para casa essa semana”, dizia ele. Essa deveria ser a esperança dela. Não houve possibilidade de uma despedida pessoalmente. O consolo que ela tanto esperava, seu companheiro que trazia calma, não chegou. O casamento deles era sólido, a parceria de afetos era profunda e os momentos de alegria, marcantes. O sepultamento foi na Igreja do Castelo. Duas filhas e agora o marido. Catarina precisava de consolo, era inevitável a angústia.

Toda a herança deixada por Lutero à Catarina não pôde ser usufruída por sua amada. Todos os anos de trabalho foram deixados, todas as finanças não haviam sido entregues à Catarina, os juízes do território não permitiam que as viúvas cuidassem das propriedades e herança, eram necessários tutores, pois eles não conheciam a competência de Catarina. Mas ela era firme em suas convicções, não seria guiada por conselhos de outro homem. Ela esteve no tribunal para exigir seus direitos legais.

Conclusão

Não é possível uma biografia exata de Catarina von Bora, sua biografia é como um buraco negro, dificilmente conseguiremos olhar para a história completa dessa mulher, como diz Ruth A. Tucker. O que é inegável, é que mesmo diante dos escritos de Lutero é impossível não perceber a grandeza de Catarina e de sua influência na história da Reforma.

Deve haver gratidão em nossos corações por todo o movimento ter ocorrido, e gratidão à vida de Catarina von Bora. Por meio de retratos tão finos e incertos, tivemos uma mulher que marcou a história e seus marcos permanecem até hoje. Sua postura deve ser avaliada, e há lições para homens e mulheres nessa história. Há exemplo, força e garra em seus passos. Também há muito desespero, ativismo e falta de paz.

Assim como nos tempos da Reforma, com a consciência totalmente desesperada de nossa dependência em Cristo e Sua verdade, que nossa postura ao olhar os relatos de reformadores seja de admiração pela busca e defesa do Senhor e das Escrituras.

Que nossa postura diante dos reformadores seja de admiração pela busca e defesa da Verdade. Click To Tweet

Celebremos a Reforma, nos reformando nEle.

Tairine Corina


Referências:

A primeira-dama da Reforma, Ruth A. Tucker.
Citado em Bainton, Here I Stand, p.286-87.
Luther’s Correspondence and Other Contemporary Letters, vol 2. pag.258.pag.299.
Citado em IBID, p.362.p.318.
Citado em Philip Schaff, History of the Christian Church, vol 7. p.455.